Maria Sangrenta

originalmente postado em 10/05/2020

“snakes are biting at my heels/ the worries that refuse to let us go/ i’ve been kicking them away/ and hoping not to let them take control”

— snakes, bastille

Como eu vou chegar em casa? Eu me perguntava e me perguntava enquanto andava sozinha ao redor do campo de futebol. Não sabia como, ou se ia acontecer, e se sim, quando? Pois já eram nove da noite, e minha aula havia acabado ao meio dia, e minha mãe ainda não havia chegado para me buscar.

As primeiras duas horas após a minha aula foram tranquilas — crianças que ainda não haviam sido buscadas e também esperavam ao meu lado e crianças que chegavam cedo para suas aulas do turno vespertino me faziam companhia e brincávamos juntos. Mas então as aulas da tarde começaram, e os pais das outras crianças chegavam um a um, colocando seus filhos em seus carros, dirigindo de volta para casa, e eu me encontrei sozinha naquele gigante colégio. Pedi na portaria para ligar para a minha mãe, e disquei seu numero que havia decorado no telefone (sem resposta alguma). Esperei e esperei e esperei mais na porta da escola e nenhum carro chegava. Em algum ponto resolvi gastar todo o dinheiro que eu tinha, 5 reais, em um salgado e uma água de côco — o mais próximo de uma refeição que eu teria naquele dia. Comi o salgado no portão da escola, esperando que enquanto comesse minha mãe chegasse (não chegou). Fui a quadra externa e me sentei na arquibancada e assisti a qualquer treino ou jogo que acontecia ali. Porteiros me perguntavam, “Maria, cadê sua mãe?” e eu apenas dava de ombros.

Assim passei meu dia. Encontrava alguma distração, e assim que essa se acabava, eu ia ao estacionamento e via se minha mãe havia chegado (não havia). Tentei ligar mais uma vez por um celular que pedi emprestado e não deu resposta. A noite caiu, as aulas vespertinas acabaram, as atividades pós-aula começaram e terminaram, e crianças com roupões de natação e suados de esportes e com instrumentos nas costas levavam suas pequenas malas de rodinha até a portaria, entravam em carros ou vans e seguiam para casa. E eu me encontrava sozinha olhando para o estacionamento quase vazio que se estendia na frente da Rua Ceará Mirim.

Em algum ponto eu me levantei e comecei a andar por toda a extensão de passarela, grama, terra e campo de futebol que existiam perto do estacionamento e me davam visão de quem entravam e saia (ninguĂ©m era a minha mãe). A escola cada vez mais se esvaziava e o silêncio reinava quase completamente, se não pelos frequentes e altos latidos dos cachorros.

Agora ando em círculos ao redor do campo de futebol e os portões dos estacionamentos já foram fechados. Creio que não apenas minha mãe mas a escola esqueceu de mim. Finalmente cai sobre mim que provavelmente dormirei na escola, mas por enquanto, por algum motivo, eu ainda tenho esperanças que tudo dê certo. Já estou provavelmente na minha quarta volta. Eu atravesso de uma trave de gol para o outro olhando para o estacionamento, esperando ela gritar meu nome do lado de fora ou algo do tipo. Passo pelas árvores e os troncos que tem ao redor delas cortados feito banquinhos. Olho para a ladeira de paralelepipedos do meu lado esquerdo e para as salas de aula que elas levam. Olho para os meus pés, meu tênis sujo de terra por causa de todas as voltas que dei, e então olho para frente. Estou cansada de dar voltas, e logo antes de eu virar para a direita e continuar a andar em círculos, eu não viro, e continuo em frente. Para fora do campo de futebol, e mato adentro. O mato cobre toda essa parte de trás da escola, e para só quando encontra o muro que separa o terreno da rua. Entre plantas e carrapichos e flores e terra, existe uma ladeira. Está extremamente escuro e o único som que ouço são as cigarras (até os cachorros se aquietaram). Continuo andando, e andando, e andando, e quando me encontro andando em uma inclinação, ladeira abaixo, eu paro. Eu estou com muito, muito medo.

Veja bem, eu tenho apenas 10 anos, e estou completamente sozinha. O escuro toma conta de tudo e a incerteza, o desconhecido, são meus piores inimigos. Coisas e bichos e monstros se escondem no mato ao meu redor, tenho certeza, e me encontro paralisada — tenho medo, agora que percebo o ambiente em que me encontro, que qualquer movimento que eu faça, ladeira mais abaixo ainda ou de volta para o campão, chame atenção de todos os perigos que espreitam. Olhando ao redor, para o escuro e as árvores e as plantas, não percebo a cobra que rasteja até mim no chão, cada vez mais perto do meus pés, até que morde o meu calcanhar e eu sinto uma leve picada. Concluindo que foi apenas um mosquito, levo minha mão á mordida e toco no bicho escamoso, olhando para ele enfim, e então gritando.

Se alguém me ouviu ou não, não importa, pois em pouco segundos o veneno se espalha pelo meu sangue e eu estou morta, paralisada no chão.

Sinto as cobras — plural, e não sei de onde as outras criaturas surgiram — me arrastarem, como esteiras embaixo de mim, para outro lugar. Sentir; 1. verbo transitivo direto: ter a sensação de; perceber por meio dos sentidos. “sentir o aroma das flores”. 2. verbo intransitivo: ter capacidade de percepção, consciência, sensibilidade (física ou moral) etc. “os cães parecem sentir”. Não acho que essa seja a palavra certa. Não sinto as cobras me levando, pois não tenho sentido algum, muito menos consciência ou sensibilidade, afinal, estou morta. Acho que todos que já estiveram nesse contexto e pensaram uma frase parecida não viveram para contar a história e inventar uma palavra que defina perfeitamente o sentimento, então os contarei essa mentira: senti as cobras me levando, e então não senti mais nada — não apenas porque estava morta, mas porque na verdade acho que agora estou viva, só que não tenho pele, toque, tato, um sistema nervoso que leve sinapses ao meu cérebro e me faça pensar, “estou sentindo!”. Em vez disso, tenho uma raiz, um tronco, folhas, mangas e ramos, e na árvore que agora hábito, há uma pequena marcação, parecida com um olho. Por essa marcação, posso ver tudo.

Vejo o sol nascer, a escola voltar a vida, professores e funcionários e alunos andando por perto de mim. Adolescentes com aparências cansadas descendo a ladeira a minha direita, crianças com malinhas de rodinhas bem a frente, jogando futebol no campo a minha direita. Vejo tudo. Anos se passam, e continuo vendo.

“A árvore da Maria Sangrenta,” eles falam e inventam lendas a meu respeito, quando se reúnem ao meu redor sentados nos tocos de madeira que servem como pequenos bancos, e eu não ouço, pois sou uma árvore e não tenho ouvidos. Um menino chegou perto de mim uma vez, e eu poderia chorar, se não fosse uma árvore. Ele levantou a mão e tocou abaixo de meu olho, e quando retirou o dedo, estava sujo de sangue. “Vamos para a ladeira da morte,” as crianças brincavam, correndo em direção ao mato e em resposta, “Não!”, eu não gritava, pois sou uma árvore e não tenho voz.

Enraizada na terra, tudo que podia fazer era pensar sobre a vida ao meu redor. Aprendi a fotossíntese e a divisão celular, os hábitos de micos e pássaros, a geometria das teias de aranha e física das estrelas. Observo as crianças, os adolescentes, os professores, os funcionários. Eu não conheço mais a dor e o triunfo humano, apenas água e minerais e clorofila. Acho que esqueci como era antes. Esqueci história e geografia, esqueci da minha mãe (assim como ela esqueceu de mim). Esqueci de minhas tranças e meus olhos castanhos e dos dez dedos das minhas mãos. Esqueci de tudo que me levou a esse estado, esqueci da vida que um dia vivi — tudo o que sei são galhos e folhas e mangas rosadas crescendo de mim.

Então uma menina chega na minha frente. Uma das jovens que frequentemente desciam e subiam a ladeira de paralelepipedos do meu lado. Eles raramente chegam perto, apenas passam por mim, indo e voltando de seus dias inteiros passados nas pequenas salas de aula que se estendem a minha direita. A menina para na minha frente e senta em um dos tocos de madeira, cabelos curtos e olhos exaustos. Como uma árvore, não tenho o necessário para assimilar rostos, mas se tivesse saberia que há mais de uma década a menina passa por mim. Suas impressões estavam há muito tempo perdidas em meu tronco, e mais uma vez nós nos encontrávamos. Ela me observa por algum tempo, e então, com um sorriso nostálgico no rosto, fala.

“Maria sangrenta,” ela diz uma vez. “Maria sangrenta,” ela repete. “Maria sangrenta.” ela fala pela última vez.

Três vezes ela diz o meu nome e se eu pudesse sentir, teria sentido minha alma sair do meu corpo. Em vez de troncos e raízes e caules e folhas e mangas eu não tenho nada — uma forma incorpórea flutuando. Olho para baixo, para a árvore que por tanto tempo habitei, e a menina não está mais sentada no toco. Em vez disso, uma listra de sangue sai da marca no tronco que se iguala a um olho. Eu lentamente desvaneço no espaço, gradualmente desapareço no tempo, e o ciclo recomeça mais uma vez. A árvore observa tudo ao seu redor, conhece os centímetros de seu corpo botânico e a sensação de não sentir. Cada uma de nós foi esquecida, acredito, em seus próprios modos.

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