Uma Maldicão

originalmente postado em 16/08/2022

Um dia desde que fui fisgada da escuridão. Quanto tempo se passou desde que me largaram no escuro, esquecida entre teias de aranha e terra? É impossível saber. Tempo o suficiente para sentir falta da sensação de uma mão me manejando, o calor passando para a lâmina fria, sempre afiada, ao contrário de minha mente. A qualquer momento irão me colocar para trabalhar novamente, banhando-me em sangue e carne, e parte de mim anseia a emoção que fui feita para sentir, mas outra parte dá um longo suspiro de fatiga ao pensar nesse ciclo mais uma vez — quanto tempo mais terei que servir? Quantas vezes mais serei descartada?

O barulho de folhas se mexendo perturba o silêncio preenchido apenas pelo cantar de grilos, e minha nova portadora não se mexe. Um dos dedos de sua mão descansa levemente em meu cabo, e tento usar esse contato para acordá-la. Um dia desde que fui fisgada da escuridão e já começo o inevitável processo de enlouquecê-la que foi dado a mim como maldição, mas ela abre os olhos num sobressalto e rapidamente percebe o barulho e o movimento atrás de si, segura firmemente no cabo da espada e, pegando o intruso de surpresa, se vira e ataca. Há algo agridoce na maneira que sinto o gosto da carne, o alívio de um vício saciado após dias de abstinência, a culpa da cor escura do sangue que escorre do pequeno corte no pescoço do homem. Apenas um arranhão, fino e raso, inofensivo se ele segurar o fluxo com a mão e viver mais um dia, mas é o suficiente para trazer de volta a memória que a cada dia desaparecia mais de minha mente, e agora estamos realmente entrando de cabeça nesse ciclo vicioso.

Ela continua segurando a lâmina contra o pescoço do bandido, mandando-o para longe de sua pilhagem com medo, e há algo puxando-me para trás, sussurrando no meu ouvido como um demônio em meu ombro, vá em frente, mais profundo, corte tudo, demandando tudo de mim para que eu não dê ouvidos, mesmo sedenta, e ela sente também. Sei que sente, pelo jeito que olha para as próprias mãos e para mim, percebendo um intruso em sua cabeça, um sussurro de longe, uma falta de controle que não estava ali antes. E é tarde demais para ambas de nós. Uma maldição é um bicho sedento por sangue, sem misericórdia ou justificativa, uma lasca de madeira no cabo de uma espada que faz-se em estilhaços de pouco em pouco até que se é pego de surpresa com uma estaca perfurando o coração, correndo por sua corrente sanguínea até que não há mais linha separando madeira de carne, lâmina de homem.

Há algo frágil entre nós duas. Ambas queremos sangue, lutando contra uma vontade de se saciar com mais, de cortar um pouco mais fundo, e juntas acabamos mais propensas a se deixar levar. É um dia sangrento. Ela caminha pela densa floresta com uma bolsa cheia de objetos metálicos que a cada passo geram uma sinfonia de clinks, cálices se chocando contra moedas de prata se chocando contra talheres, tudo de valioso que me rodeava em segredo no tempo que fiquei largada no escuro, nenhuma ideia de que fazia parte de um tesouro de gigante potencial.

É difícil achar sossego — aparentemente o rosto de minha nova portadora é conhecido pela região, os objetos valiosos em suas costas chamando com seu canto todos os bandidos que o ouvem, e há algo sobre a oportunidade que nos faz atacar sem dó, a mesma voz que sussurra pela carnificina sussurrando como reconforto, mas não seria nada de errado, não é? Apenas defesa, apenas defesa. Não foi sempre assim. A primeira pessoa a me brandir me usava apenas para livrar o caminho de obstáculos. Nenhuma voz rastejava em nossos pescoços por sangue, talvez porque nenhuma de nós o havia provado. Meus sentidos se acostumavam com o novo formato, minha língua sedenta por coisas humanas demais, mas isso também vinha com seu preço, sua fome. Uma maldição é um bicho sedento por sangue, de lâmina afiada e dentes para combustível.

Ela para em uma taverna quando acha que já está longe e escuro o suficiente para não reconhecerem seu rosto, e no quarto do tamanho de um armário levanta a túnica para olhar o estrago — uma ferida profunda, vermelha, pulsando em seu torso o dia inteiro. Ambas sabemos que se não fosse a mim que ela brandasse, sua ferida seria muito maior, mais profunda, mais letal. A maior parte do estrago foi feita antes de me alcançar na pilha de pratarias e armaduras, e me pergunto se há uma gota de arrependimento no fundo de sua mente, de não ter pego qualquer outra coisa no meio de todo aquele tesouro para se defender — mas uma desesperada fisgada por proteção e agora ela estava presa a mim.

Ela troca o curativo em seu tronco e olha para mim com um suspiro. Não consigo lê-la, e um vazio familiar toma conta de meu abstrato estômago — qual será o tamanho da gota em sua cabeça, martelando ressentimento contra a maldição que já deve perceber que a segue, quais serão as ideias que surgem em sua mente para se livrar disso, de mim? Não me é estranha a sensação de ser quebrada, lâmina partida em pedaços, metal se desfazendo aos poucos, o corpo físico que ainda me resta sendo tirado de mim e tentando se agarrar ao que quer que fosse que sobrasse da alma. É a primeira ideia que têm, quando as consequências do meu toque começam a enlouquecer o portador, mas apenas porque não fazem ideia do que é não saber onde se está, não reconhecer no espaço sua própria alma quando seu corpo se desfaz e sua consciência não fica guardada acima do pescoço. A segunda é guiar a lâmina a si mesmo.

Mas no fim, não é tão difícil assim. Me largue no chão por tempo o suficiente, ande para longe o bastante, e com paciência o diabo não aparece mais em seu ombro. O infortúnio é meu para carregar, e quem me porta está apenas fazendo companhia. Uma maldição é um lobo solitário.

Ela fecha os olhos por menos de duas horas e então já estamos em nosso caminho, o medo de estarem a alcançando sendo maior que o cansaço. O jeito que vigia suas costas me lembra alguém que me portou logo no início, me roubando dos tesouros do patrono de minha confecção, tendo que lidar com as consequências de mexer com o orgulho de alguém que pode mandar uma legião atrás de sua cabeça.

Mesmo se não estivesse intrinsecamente sujeita a proteger quem me ergue, não teria como não estar do lado do ladrão, em todas as vezes em que estive — o oposto sendo sempre os solitários confins de reservas secretas de homens que nunca brandiram uma espada na vida, seus rostos se distanciando da minha memória a cada segundo que passo no escuro, em piscinas de metal e ouro e prata e bronze que mais parecem uma câmara de privação de sentidos, décadas passando e corroendo tudo ao redor, o alívio de ver o céu e provar sangue novamente depois de incontáveis anos sendo comparável à sensação que guardo na memória de um dia ter um corpo, estender os braços para as nuvens e correr.

Talvez se ela soubesse de tudo isso, convencê-la a pôr um fim à emoção da fuga e do sangue fosse mais fácil. Talvez entendesse que meu pedido vem de um lugar similar ao seu. Mas não tenho como fazê-la ouvir — minha voz atinge frequências audíveis apenas por aqueles que sabem interpretar os sutis movimentos de um objeto inanimado, que ouvem a mim porque ouvem a si — pelo menos é o pouco que eu sei. Uma maldição é um sopro que tudo abrange, uma onda que leva consigo tudo que vir na frente, uma histeria coletiva, uma silenciosa epidemia. Tudo que seu ouvido filtra de minha voz são os graves sussurros que não sei controlar, e não demora muito para que paremos no caminho e ela se sente, me segurando no colo, manchando de vermelho um pequeno pano que passa por minha lâmina.

É difícil, para uma mente constantemente confusa, equilibrar os momentos sombrios, quando ela brevemente considera manter-se parada e deixar o inimigo fugir, até que um empurrão mental que vem a mim de forma intrusiva é o suficiente para me levar a sentir mais uma vez uma mordida de carne, e os momentos em que senta, num raro minuto de tranquilidade e silêncio, e limpa sua espada — a mim — como quem toma conta de uma preciosidade, segurando seus ombros e olhando nos seus olhos, pedindo para que você tente igualar sua respiração à dela, te deixando desmoronar para fora de arfadas. Mas o carinho do movimento das suas mãos é incerto e me assusta, porque sei, pela forma que olha de volta para a lâmina que carrega, igualmente incerta e assustada, que ela sabe o que estou fazendo. Que ela percebe de que direção vem os sussurros vis que ouve em sua cabeça.

O momento de tranquilidade não dura muito, e logo ela tem de se pôr a fugir mais uma vez. A tensão é palpável no ar e logo nos compreendemos em lutas, as pessoas atrás de nós ainda nada perto de desistir de nos seguir — a recompensa, pelo que sei do poço de tesouros que a pouco tempo me encontrava largada, deve ser generosa, mas dessa vez minha portadora se mantém contida, sustentando o equilíbrio mesmo quando sussurros involuntários se tornam berros instintivos, por sangue e desespero e proteção, para que me coloque para trabalhar. Há serenidade na forma que resiste, e sai ilesa de toda forma, tal qual as pessoas com as quais deveria lutar. Mas posso senti-la pensando — quem merecia sangrar mas afastou-se intacto? (uma maldição é uma dúvida que se agarra e se implanta, uma semente na boca de um pássaro que não olha para baixo na hora de soltar).

Há uma coisa que nos difere, que nos torna oponentes, como se fossemos adversários correndo lado a lado atrás de algo que só um de nós pudesse ter — de certa forma, é essa a dança que fazemos: quanto mais tempo passamos juntas, mais volto a me sentir humana, sentir uma pitada de livre-arbítrio e experienciar o mundo afora, lembrando por meio de seu corpo como é a sensação — quanto tempo teria que passar para realmente ver isso acontecer, a parte de dentro ser mais forte que a parte de fora? Mas o que ela sente é o oposto. Pode se esforçar toda vez para ser harmoniosa e prudente, mas pouco a pouco a fome de sangue desgasta as paredes e o que ela vê é que se tornou algo como uma besta. Só uma pessoa pode ser humano aqui, e eu comecei com uma desvantagem.

Posso disputar e inflamar sua cabeça ainda mais, transformar toda vez os sussurros em berros, em pandemônicas sinfonias, acelerar o processo e garantir uma vitória. Seria certamente mais fácil. Mas há algo na forma que resiste mesmo quando sua língua clama por carnificina que desperta, em ambas de nós, um monstro ainda maior. Ela quer entender o que sou, e eu quero entender o que faz. Uma maldição é um gato morto pela curiosidade, uma temporada de caça aberta, um desejo de conhecer na ponta da língua e na palma da mão.

Dançamos ao redor uma da outra tentando achar simetria. Um grupo de homens bradando mais armas do que necessário nos encurrala, e ela só não é o bastante para lidar com todos, mesmo com os olhos vermelhos de sangue, procurando por carne. A ferida em seu torso está cada vez pior e sinto sua dor a cada movimento que faz, então, contra todos os meus princípios, sussurro com calma que o melhor que pode fazer agora é fugir. Ela está lenta e vulnerável, e quando correm atrás de nós tenho que guiar sua mão para desviar de golpes fatais. Quando estamos longe o suficiente, posso ver nela que não somos tão adversárias assim, ambas abrindo mão da fome, que tanto cega, fazendo-nos ver apenas vermelho, vermelho, vermelho. Decido: ela pode ficar com seu corpo, a humanidade — eu já a renunciei há muito tempo. Ela me segura em suas mãos, passando os dedos pela lâmina, não limpando, como fez antes, mas apenas apreciando. Uma maldição é uma lua com chifres, duas velas acesas, uma para deus, outra para o diabo, um jogo entregue desde o início.

Quando eu estava no vazio, mais uma vez dentre tantas, antes dela invadir o cofre e me enfiar numa bolsa junto de taças e joias, mais um tesouro dentre tantos, quando perdi noção do tempo, um dia antes de ser fisgada da escuridão, imaginei ter ouvido outra voz alí. Não era a minha, ou o sussurro na minha nuca clamando por sangue — não, esse sussurro estava saciado pelas décadas de solitude e os anos de violência brutal — , a voz que eu ouvia queria apenas conversar. Passar o tempo.

Nunca soube se algo alí, naquele mar dourado, também podia me ouvir, ou se todo aquele tempo no escuro estava desgastando minha sanidade, mas independente de ser apenas eu ou outra coisa, falamos de desejos como quem sabe que não se realizariam. Não há limite nesse tipo de conversa, não há possibilidades ou impossibilidades no vazio, no escuro. Mas não precisava ir muito longe — só queria luz; ser uma reverenciada herança, uma relíquia enfeitando uma parede, ao invés de largada no fundo de uma pilha. Eu já havia tentado antes — talvez muitas vezes antes — mas não conseguia lembrar se já havia conseguido.

Agora, do lado de fora, faria qualquer coisa para garantir que nunca volte para o chão novamente. Em algum momento, talvez, eu tenha tentado — talvez muitas vezes antes — desfazer essa forma, voltar para o que um dia fui — mas nada lembro. Não lembro o que fui, não lembro se tentei. Parece um desejo alto demais agora. Uma maldição é uma condição provavelmente eterna, uma situação para se conviver. Uma fome que já esqueci antes, posso esquecer novamente. Uma maldição é uma decoração de casa, uma espada na parede, entre quadros e janelas; é uma consciência lentamente entrando em desuso, uma noção de existência se extinguindo como o efeito da luz do sol em uma pintura, dia após dia após dia.

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