Hilda
originalmente postado em 30/03/2020“i’m just waiting for the walls of my insides to come clean/ i’ve been praying for the day that my spirit is finally free/ somedays it feels like the ocean lies inside of me.”
— the ocean, tonight alive
Hilda era conhecida por falar sobre igualdade sempre que era lhe dada a oportunidade, então quando Lucas fez um de seus frequentes comentários machistas na frente dela, eu fechei os meus olhos e respirei fundo e esperei a palestra que viria da menina que sempre sentava do meu lado nas aulas de história. Não é que eu não concordo com o que ela fala — é que tendo Hilda como uma das únicas pessoas que conversa comigo nessa escola eu já ouvi tudo que ela tem a dizer, e naquele momento específico a minha dor de cabeça estava prestes a explodir os meus miolos para fora, então a última coisa que eu queria ouvir naquele momento era Hilda gritando com o menino do outro lado da sala de aula sobre por que ele estava errado. A primeira coisa era o puro e simples silêncio.
Tentando o meu máximo para não parecer mal educada, eu pedi licença em um volume inaudível e me levantei da minha cadeira, saindo da sala e me escorando na parede do lado de fora, deixando que a porta de madeira abafasse o som da voz de Hilda e que o silêncio do corredor de salas vazio me envolvesse.
E aí eu decidi ir embora. Voltar para casa e ignorar que eu ainda tinha muitas aulas naquela manhã e treino a tarde. Eu havia desistido daquele dia como um todo, então voltei para sala rapidamente e vi que ninguém havia me percebido entrar — a discussão de Hilda e Lucas entretia a todos ali dentro. Eu peguei minha mochila e saí, torcendo para não acidentalmente me encontrar com o professor que havia saído da sala antes de tudo aquilo acontecer e ainda não havia voltado. Eu desci as escadas, corri, saí da escola e peguei o ônibus de volta para casa — uma viagem razoavelmente longa, visto que minha casa era no litoral e a escola bem no centro. Em nenhum momento passou pela minha cabeça um simples fato — que há muito tempo eu não ficava em casa a essa hora e o que isso significava. Só percebi quando abri a porta e me deparei com meu irmão na sala.
Theo tinha aulas na faculdade apenas a noite, e eu normalmente só chegava em casa quando ele já tinha saído. Para o bem de ambos, nós raramente nos viamos, apesar de morarmos sob o mesmo teto.
Ele não esperava que fosse eu ali, na porta, e naturalmente olhou para a entrada — e então rapidamente desviou os olhos de volta para o que quer que estivesse fazendo, ao perceber que era eu. Foi provavelmente a primeira vez que nos olhamos em 5 anos, ou algo assim. Meu irmão não dirigia uma palavra a mim desde que a nossa irmã mais nova havia morrido. Eu joguei minha mochila no chão da entrada e fui ao meu quarto, surpreendida por outra coisa que não via há muito tempo — minha janela estava aberta.
Talvez uma pessoa um pouco menos cética adicionaria 2+2 e chegaria a uma certa conclusão de que naquele dia pequenos rumos estavam sendo tomados de forma que os acontecimentos de 5 anos atrás viessem a tona. Eu não fiz essa conta. Não poderia significar nada. Aquela janela específica do meu quarto era a única que dava vista ao mar — nossa casa estava bem na beira da praia, e a porta de trás dava bem na areia. Se algum de nós quisesse tomar um banho, era apenas alguns passos de distância. Eu, pessoalmente, não passava por aquela porta há anos.
Nos dias apos a morte da minha irmã, eu acordava toda noite no meio da noite e olhava por aquela janela — ela ficava aberta, deixando o vento entrar, e, por trás dela, lá fora na praia, eu sempre via a minha irmã — toda molhada, chorando, gritando por mim. Três noites disso, eu fechei a janela, fechei as cortinas, comprei um ventilador portátil e nunca mais pensei sobre aquilo novamente.
Mas hoje a janela estava aberta e pela primeira vez em muito tempo eu havia visto o mar ali perto de mim. Cinco anos odiando essa vista, eu havia construído uma imagem assustadora daquilo tudo na minha mente — eu havia eternizado o mar na minha cabeça num dia nublado, com ondas violentas e resultados fatais. Olhando para ele agora, ele era apenas azul e ensolarado. Inofensivo. Eu fechei a janela e as cortinas e me deitei para cochilar.
Eu nao sei a quantidade de tempo que define a linha tênue entre cochilar e dormir, mas apesar de usar o primeiro nome, eu não esperava acordar antes do sol se pôr. Eu só queria não estar acordada e deixar que aquele dia perdido passasse o mais rápido possível sem que eu precisasse vivê-lo, mas apenas uma hora depois eu acordei com um barulho e vi a minha janela batendo na parede, abrindo escancarada. Não fazia sentido — o vento não estava minimamente forte e mesmo se estivesse, era preciso um fenômeno natural dos grandes para simplesmente abrir minha janela trancada assim. As cortinas haviam se aberto junto com a janela e a brisa do mar entrava livremente pelo quarto, o cheiro do oceano infestando as minhas narinas e me obrigando a percebê-lo. Eu levantei rápido da minha cama para fechar tudo de novo e pensando, hoje não, hoje não. Um dia eu posso superar tudo isso e abrir essa janela eu mesma e colocar os meus pés na areia de novo mas hoje não. Eu não sabia porque aquilo estava acontecendo e por mais força que eu colocasse, a janela não fechava de volta. Eu fechei as cortinas mas o vento que entrava as afastava de todo jeito.
Saí do quarto e meu irmão ainda estava na sala, deitado no sofá com um livro.
“É você que está fazendo isso?” eu perguntei. Num dia diferente eu não teria a mínima coragem de falar com ele sabendo que tudo que receberia em troca era silêncio. Há 5 anos Theo me culpava por aquele dia, em que eu deveria estar olhando nossa irmã na praia — ela tinha menos de 7 anos na época e precisava de supervisão quando ia ao mar, ou então tentaria ir contra as ordens dos nossos pais e nadaria até o fundo, acreditando ser perfeitamente capaz de nadar onde seus pés não tocavam o chão. Só estávamos nós duas em casa naquele dia, e ela me pediu para assisti-la na praia. Tudo aconteceu muito rápido. As ondas estavam violentas e eu frequentemente gritava para ela vir mais para o raso.
Em algum momento eu fui para casa pegar um copo d’água — não me pareceu perigoso — nós moramos bem ali a passos de distância de onde estava e não demoraria mais de dois minutos. Mas foram só dois minutos que ela precisou para nadar um pouco mais para o fundo e ser atingida por uma onda devastadora e bater a cabeça em uma pedra, morrendo instantaneamente.
O único modo que Theo conseguia lidar com aquilo era me culpando e me afastando de sua vida, aparentemente, então 5 anos atrás eu havia perdido ambos os meus irmãos. Theo não tirou os olhos do seu livro e não abriu a boca. Em qualquer outro dia eu teria desistido. Mas algo havia impedido minhas horas de sono em um dia extremamente ruim e eu estava irritada.
“Theo, porra. Foi você quem abriu minha janela?” eu me aproximei dele e arranquei o livro de suas mãos. Ele olhou para mim.
“Eu não sai desse sofá o dia inteiro.” ele disse, olhando nos meus olhos, e arrancou o livro de volta das minhas mãos. Ele poderia facilmente estar mentindo, mas por mais que eu tivesse perguntado, eu não achava de modo algum que havia sido sua culpa. Eu havia visto a janela abrir, como se o vento inexistente houvesse destrancado a fechadura e aberto as cortinas e empurrado a janela. Eu havia visto e não seria possível meu irmão ter feito tudo isso sem que eu o visse. Ele não havia saído do sofá o dia inteiro, e a minha janela simplesmente havia se aberto. Não tinha nada que eu pudesse fazer.
Eu olhei ao meu redor e parecia que todas as janelas da sala que davam para a praia estavam abertas, dando visão ao mar e todas as suas ondas e pedras, e se eu fechasse meus olhos para fugir daquilo, o cheiro da maresia infiltrava minhas narinas e as imagens daquele dia se projetavam nas minhas pálpebras escuras, como se o oceano estivesse me dizendo que eu já havia fugido por tempo demais. Eu abri meus olhos e bem na minha frente, apoiada na janela da sala que dava para o lado de fora e fazia grãos de areia infestarem o chão de madeira da nossa casa por causa do vento, estava a minha irmã. Molhada, chorando, chamando meu nome.
“Theo,” eu falei, desesperada, olhos marejados fixados na figura na janela. “Você tá vendo isso?”, mas nem isso faria meu irmão me perdoar. Ele grunhiu irritado e se levantou, sem me responder e sem em algum momento ser chamado atenção pela criança na janela, andando com passos violentos até o seu quarto e batendo a porta com tudo. Estávamos só eu e minha irmã morta sozinhas agora, e eu não sabia o que era real ou não.
Eu me aproximei da menina na janela e ela repetia meu nome diversas vezes, até que eu estava bem na sua frente e ela se calou, olhando para mim, limpando as lágrimas no seu rosto. Eu levantei o meu braço e tentei tocá-la, esperando que minha mão passasse por ela, como se fosse um espectro. Mas quando minha mão a alcançou eu toquei bem na sua bochecha e senti os grãos de areia grudados em seu rosto molhado de lágrimas e de água do mar. “Desculpa,” foi tudo que eu consegui falar. “Me desculpa, me desculpa, me desculpa,” e lágrimas saiam incontrolavelmente dos meus olhos enquanto a menina apenas me observava. Eu respirei fundo e falei uma última vez.
“Me desculpa,” eu disse. Por mais que estivesse tudo acontecendo bem na frente dos meus olhos e o sentimento dos meus dedos na bochecha dela fossem a coisa mais real que eu já tinha sentido em anos, eu não conseguia pensar em outra explicação para aquilo além de que eu estava delirando ou talvez eu nunca tivesse acordado daquele cochilo, talvez eu ainda estivesse dormindo. Talvez o fantasma da minha irmã tivesse vindo para mim num sonho, me dando uma chance de me perdoar e seguir em frente. Mas quando eu estava prestes a tirar minha mão de seu rosto, prestes a retirar o meu braço, a menina na janela segurou o meu pulso com força e me puxou para frente. A expressão em seu rosto era completamente neutra, e enquanto eu deixava o que eu pensava ser um sonho tomar o rumo que ele quisesse, pois a qualquer momento eu poderia acordar e acabar com aquilo, eu deixei a menina me guiar para fora, seu aperto no meu pulso firme enquanto eu pulava a janela e colocava meus pés na areia ao lado da minha finada irmã. Que sonho estranho, eu pensava, enquanto minha irmã segurava minha mão e me guiava pela praia, me levando Deus sabe aonde, e com ela ali do meu lado eu pensei que não fazia sentido eu ter passado tanto tempo odiando essa vista. O vento bagunçava os nossos cabelos e minha irmã começou a correr, me puxando junto pelo braço. Ela corria para a direita, para longe da casa e para mais perto do mar, e eu não sabia para onde estávamos indo mas por um breve momento senti como se fosse cinco anos atrás e nós estávamos rindo e brincando pela praia, nenhuma tragédia planando sobre nossas vidas.
Foi só quando começamos a subir o pequeno penhasco que percebi o que estava acontecendo.
Quando eu era bem pequena, algumas pessoas costumavam pular daqui até o mar. Se o pulo fosse num ângulo certo, poderia ser um belo pico de adrenalina, um ponto perfeito para pular na água e se divertir. Mas qualquer deslize, o pulo o levaria às pedras que rodeavam o fundo do penhasco, e sua morte seria instantânea. Depois de diversos resultados fatais nesse penhasco tão perto de nossa casa, resolveram proibir oficialmente qualquer atividade ali, e fizeram uma barreira de pedras lá em baixo junto das outras pedras, para que ângulo de pulo nenhum valesse a pena. Há anos ninguém subia ali, até o momento em que minha irmã me puxava pelo braço com uma força impossível para uma menina de 6 anos, de forma que, quando percebi para onde ela estava me levando e comecei a temer qual era o objetivo dela, mesmo que tentasse soltar sua mão da minha, eu não conseguia.
“Por que a gente tá subindo?” eu perguntei, o medo tangível em minha voz, mas ela continuou com sua expressão neutra e sem dizer uma palavra. Eu fechei os olhos e respirei fundo, tentando acordar daquele pesadelo. Eu me belisquei com a minha mão livre e sussurrei para mim mesma ‘acorde, acorde, acorde’, mas nada mudava. Então chegamos no topo do penhasco, e minha irmã parou e olhou pra mim.
“Vem.” ela disse, balançando a cabeça em direção ao mar que se estendia debaixo de nós.
Eu não tinha como correr. Não havia nada naquele momento que eu pudesse fazer além do que minha irmã morta estava me mandando fazer, então, pensando, ‘pelo menos eu vou acordar’, minha irmã andou comigo até a ponta do penhasco e eu pulei.
Uma pessoa menos cética talvez tivesse percebido que isso não era de modo algum um sonho desde o começo, mas a realização só veio para mim quando meus pés já não tocavam mais no chão e a gravidade me levava rapidamente para baixo, para baixo, para baixo.
“Eu não vou acordar,” pensei. “muito pelo contrário”. E enquanto caía, pensei que aquilo não era de longe a pior coisa que poderia acontecer comigo. Muito pelo contrário.
Eles estavam errados. A barreira de pedras não impedia a adrenalina e a diversão — apenas a sensação de segurança. Apenas a esperança de que quando você caísse, você cairia na água, são e salvo. Mas a adrenalina ainda estava ali, e, no meio do ar, minha morte iminente me esperando, a altura e a queda me davam borboletas no estômago e eu sorri, sabendo que depois da adrenalina viria a paz.
Deitada, perfurada por pedras e sentindo todo o meu sangue sair de mim, por um breve momento eu abri os olhos — o sol quente do meio dia brilhava sobre mim e o barulho das ondas batendo nas pedras era ensurdecedor — e minha irmã estava do meu lado, olhando pra mim, e quando nossos olhos se encontraram ela sorriu e disse, em sua voz fina e infantil: “Senti sua falta”.