corpo-casa-bomba nuclear

originalmente postado em 04/07/2022

Nível de radiação: 5


Essa é uma terra seca e devastada. Na fronteira, as paisagens são tão desconhecidas quanto familiares. Para todo lado vejo amontoados de restos e detritos cujas formas originais se perderam para o tempo, e agora as pilhas e pilhas de coisas descartadas — tanto por pessoas quanto pela própria natureza — criam formatos novos que apenas raros olhos de quem ousa pisar no descampado e murcho chão conseguem ver, e tentar entender a anatomia da vegetação desse lugar. Tento encontrar nas pilhas algo distinguível de pedra e lixo e areia, e de vez em quando meus olhos capturam pedaços de algo familiar — metade de um óculos de sol, a capa solta de um livro, um urso de pelúcia destroçado.

Às vezes tenho a sensação de que se passo muito tempo andando por aqui, vendo apenas formações peculiares de montes de lixo, começo a perder a noção de meu próprio corpo, me camuflando nas formas anárquicas e me tornando uma delas. Por isso, sigo andando pelo sul, onde posso contar com algo para manter meus pés no chão enquanto luto para ficar acordada.


Uma linha natural de detritos e poeira me encaminha para o que reconheço como um templo, em pé por pura e estúpida sorte. Imagino, pelas partes caídas ao redor da construção, que era decorado por uma grandiosa arquitetura. Há pedaços de anjos por todo lugar, e quando reconheço uma pedra nos meus pés como sendo um terço da cabeça da estátua de um anjo, começo a reconhecer todos os outros pedaços esculpidos de suas roupas. Tão cedo em minha viagem encontrei vestígios recentes de civilização, sinais de vida e tradição, num templo para os mortos que se destaca dentre um meio que pouco parece se preocupar com tais sentimentos, e me frustra pensar que poderia ter encontrado algo como uma rotina humana aqui há não muito tempo. De toda forma, é fascinante que esse tempo todo poderiam haver pessoas honrando seus mortos por aqui, absorvidos num ecossistema que não se importa com seus nomes e medos e sonhos, mas perseverando humanamente mesmo assim.

Não há muito para ver dentro do templo e não consigo explorá-lo a fundo por causa de amontoados de pedra interrompendo passagens, mas logo na entrada encontrei um saco de açúcar intacto, apoiado numa placa de mármore. Até as formigas acharam algo melhor para fazer.


O solo vai ficando cada vez mais fértil ao longo que ando. Trechos esporádicos de grama gradualmente se tornam todo o chão que piso, e a vegetação vai ficando cada vez mais alta. Um formato humanamente artificial vai tomando forma pelas plantas que chegam à minha altura, imitando paredes em seu alinhamento estranhamente perfeccionista, e não preciso olhar muito para perceber o labirinto. Uma imagem que associo a filmes de contos de fadas, a jardins de mansões enormes, calculadamente podadas por jardineiros mal pagos. Mas o verde por onde ando é só mais uma composição arquitetônica de um ecossistema intricado.

Sinto que ando há dias, mesmo tendo encontrado apenas uma ou duas bifurcações. Se isso é obra dessa força da natureza e de fato não um monumento engendrado, é possível que não tenha em mente fazer sentido para alguém como eu. Um labirinto em sua forma mais orgânica, um acidente de livre arbítrio do ecossistema que não está preocupado em ter um fim e um começo, neutro diante a mim. Cansei de andar no que pareciam ser voltas e voltas pelo mesmo lugar, e sinto o que queria evitar desde o início– meu senso de mim mesma sendo aniquilado, meus movimentos se fundindo aos movimentos anárquicos do elemento em que me encontro e faço parte. Estou cansada demais para isso. Tudo é verde ao meu redor, e parece bobo me exaustar para tentar continuar me sentindo humana.

Sentei no chão apoiada no muro de plantas e dormi. Não tenho mais noção das horas. Quando acordei, um estranho cheiro de ferro me fez perceber que um coelho jazia morto logo a frente, e andei até ele, percebendo que virando logo à esquerda os muros do labirinto se espalhavam para os lados, abrindo para a floresta, desfazendo seu formato. Não era bem o fim do labirinto, mas sim uma expansão, ou uma dissolução. Vou arranjar alguma forma de comer o coelho.


Consigo ver o sol por entre brechas das folhas das árvores cada vez mais altas, e mesmo não estando perto de se pôr, sinto que fica cada vez mais escuro o mais fundo que vou. Mais alto e mais escuro, uma zona crepuscular onde a luz e a temperatura começam a decair.

Vejo uma luz se movendo à frente, atravessando, e vejo a bizarra versão de um anfíbio que esse lugar criou. Parecia uma gigante salamandra, andando de quatro e balançando uma cauda do mesmo tamanho de seu torso. Não deu atenção a mim, apenas caminhou e parou uma vez para emitir um flash de luz. Tinha o corpo manchado, rugoso e de cor marrom, quase transparente. Seria extremamente útil ter um biólogo comigo.

Duas ou três outras salamandras passam por mim enquanto ando, e uma delas anda lentamente até que pisa em algo estranho — e corre num sobressalto. Me aproximei do lugar onde ela havia se machucado e vejo um par de tesouras extremamente enferrujadas. Como uma idiota que nunca viu uma tesoura na vida, seguro ela pela ponta e obviamente me corto, acidentalmente. Um corte no polegar e um no dedão. Penso que pelo menos estou imune ao tétano, mas do jeito que sinto o ar de todo esse lugar desenrolando o meu DNA e trançando-o a gosto, não sei se isso ainda é uma realidade. O cheiro de ferrugem aumenta ao longo que atravesso a enseada de plantas.


Nível de radiação: 4


Do outro lado da mata, encontro um cenário urbano. Não sei dizer o que há de estranho no que vejo, mas tenho uma esmagadora sensação de que algo nas pequenas moléculas que formam esse lugar e nos meus insuficientes nervos ópticos não me permite encontrar familiaridade. Uma alta construção, um pouco mais preservada do que as que já passei, se destoa no meio de várias outras, menores e mais destruídas. O interior esconde uma decoração luxuosa debaixo de camadas de poeira, e meus passos no piso de mármore semi quebrado ecoam por todo o ambiente, as paredes enormes fazendo tudo parecer minúsculo. Algum movimento meu engatilha um sensor e levo um susto por causa da aparição na minha frente — um holograma de tamanho real, danificado e falhando como num filme futurista. Uma mulher de aparência sobrenaturalmente limpa sorri para mim e me dá boas vindas ao Banco Central, com uma voz robótica nada acolhedora.

HOLOGRAMA: [cumprimentos genéricos? não consegui anotar na hora] Em que posso ajudar?

EU: …

H: …

E: …

H: Posso te ajudar com as seguintes coisas: Acesso às contas, abertura de contas, investimentos, dívidas, e várias outras coisas. Do que você precisa?

E: acesso à conta…?

H: Por favor, diga seu nome inteiro.

E: …

H: …

E: Que lugar é esse?

H: Você está no Banco Central, a empresa que proporciona a melhor experiência para a vida das pessoas. Somos movidos pela inovação e agentes da transformação.

E: …

H: Como posso te ajudar?

E: Mapa?

H: Você está no lobby principal. Neste andar, temos: balcões de atendimento, máquinas de autoatendimento, banheiros. No primeiro andar, temos: cofres, sala de atendimento com gerentes, lanchonete; banh–

O holograma falhou de vez e apagou depois de passar dificuldades nas últimas frases. Tudo está igualmente danificado aqui. Musgo cresce nas paredes de uma linda forma, que se fosse planejado por pessoas não daria certo. Vou no primeiro andar explorar os cofres — talvez o que quer que tenha levado toda a vida humana para longe daqui não tenha chegado de aviso prévio, sem interesse em deixar os moradores fugirem com seus pertences. Não que eu queira imaginar algo ruim acontecendo. Quero, mais do que qualquer tesouro, encontrar um sinal de que não é impossível prosperar nesse ambiente, sem precisar se mesclar à radioatividade e às camadas de poeira para se encaixar no ecossistema desconhecido.

A porta semi destruída de um cofre me dá acesso à parte de dentro, mas tudo que há são restos, empilhados numa sala estranhamente limpa. Não há poeira no chão ou plantas retomando as paredes para si, apenas objetos quase nada valiosos enferrujando em solitude e gavetas caindo aos pedaços. Não preciso fazer força para tentar abri-las. Dei um leve soco em uma gaveta e várias outras abriram sem dificuldade com o impacto. A maioria está vazia. Pego um punhado de moedas de prata que não sei onde poderia usar e vou embora. As vozes artificiais, que de vez em quando são alarmadas por sensores danificados, que não foram nem provocados, me assustam.


Seguindo depois do banco, as ruas rapidamente dão espaço para fileiras de casas, todas parecidas umas com as outras. Um bairro abandonado que imita subúrbios americanos de filmes de terror ou apocalipse, como se estivessem se comprometendo comigo — se moldando numa forma familiar, mas nunca estive em um lugar assim. Essa é uma relação mútua de falta de comunicação, em que o ecossistema penetra minha pele e muda cada vez mais meus genes quanto mais permaneço aqui, e em consequência, não sabe achar o que realmente quer, pois está mudando tudo de lugar dentro de mim. Só queria encontrar o posto logo. Sinto minhas digitais mudando de forma e paro de reconhecer coisas que deveria.

A paisagem me dá medo, mas talvez seja esse o objetivo: não a familiaridade ou o compromisso, mas apenas me assustar. Me fazer correr para fora daqui. Talvez o ecossistema esteja simplesmente me rejeitando. Bem, eu o rejeitarei de volta.

Paro apenas porque vejo uma caixa de primeiros socorros, e lembro que não muito antes daqui meus dedos estavam cortados. Esqueci porque meu corpo também havia esquecido. Há um rolo de curativos na caixa, mas meus dedos tem a aparência que nunca foram cortados. Levo os curativos de toda forma.


Nível de radiação: 3


As casas dão lugar a prédios altos e comércios, carros abandonados no meio da rua como em filmes de zumbi, uma cidade assombrada por uma cidade. Sinto que já estive aqui antes — antes da radiação tomar conta de tudo, personalizar o cenário do jeito que bem quiser, assim como está fazendo comigo. Não entendo porque o equipamento de medida diz que o nível de radiação do meu corpo está diminuindo, se estou ainda mais fundo, por ainda mais tempo, dentro do olho do furacão nuclear.

Olho meu reflexo no vidro de uma loja e sinto como se estivesse tentando ler algo num sonho: definitivamente são palavras que vejo, mas não consigo fazer com que se conectem entre si com coerência. Um navio de Teseu inverso. O quanto é possível modificar uma mente até que o corpo em que reside deixe de ser o que é?

O barulho de algo quebrando desfoca meus olhos do reflexo e foca no interior da loja. Macacos-pregos balançam pelas estantes do lugar num estado de caos e anarquia — em perfeita harmonia com o ambiente. Livros empilhados no chão são usados tanto de plataforma como de entretenimento. Um macaco folheia as páginas de um livro de receitas, e imagino-o cozinhando com as frutas vibrantes que vi no caminho, avental e tudo mais, e rio. O som alerta os bichos, e corro antes que concluam que faço parte do caos também.


Há talvez horas que os prédios terminaram e nada tomou seu lugar, apenas terra e fraca vegetação rasteira. Consigo avistar o comecinho da casa do posto no horizonte. Agora que estou tão perto, tenho medo do que posso encontrar, e secretamente acho que desejo uma bifurcação para alongar minha estadia. Mas tudo é uma coisa só, e estou cansada de fugir. Estou cansada de vistas familiares e desconhecidas ao mesmo tempo, desse corpo que não corresponde à minha mente e dessa mente que não faz parte do meu corpo. Cansada de tentar controlar os ciclos da natureza e meu lugar dentro deles, de não saber fazer parte desse lugar e não fazer mais parte do lado de fora dele. Quanto mais perto chego da casa-torre, mais percebo que esteve me vigiando durante toda a viagem. Não sei o que quer de mim, não quero saber, estou feliz em ser tão neutra quanto ela. Apenas ando.

Há um diário com a capa igual ao desse no chão, entre outras pilhas pequenas de coisas quebradas deixadas para trás.


Nível de radiação: 2


Estou na frente da casa-torre-vigia, olhando para cima sem conseguir ver o topo dela, parada na frente da escada de metal que leva até a porta. As paisagens e conceitos e barulhos e as pequenas partes que formam o meu corpo mudam na velocidade da luz, como se esse lugar zombasse da minha capacidade de compreendê-lo. A verdade é que não posso mais voltar, porque o lugar que me espera do outro lado é inteiramente novo para o corpo que passei a habitar, e não tenho como voltar para um lugar que nunca estive. Esse limiar que me encontro faz com que tudo seja parte do desconhecido — passado, futuro, tudo num constante processo aniquilador de transformação. E tenho que aceitá-lo, porque aqui ele está.

Um canivete suíço descansa enferrujado no mato perto de um dos pilares que segura a casa-torre-vigia-farol, e o apanho, fazendo, sem hesitação, um pequeno corte no meu indicador. Ensino esse corpo-ecossistema-mente-coletiva o que é auto destruição.

Uma estranha sensação na minha nuca faz com que eu volte a olhar para cima, e no topo, apoiada à grade que cerca a sacada da casa, uma criança olha de volta para mim. Cerro as sobrancelhas, em dúvida, e em resposta a criança aponta com seus pequenos dedos gordinhos para o canivete na minha mão. Levanto-a de leve, perguntando com gestos se é isso que procura, e ela acena que sim com a cabeça. Respiro e começo a subir as escadas.

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