cartão postal

originalmente postado em 05/10/2022

Nós estávamos em algum ponto dos 3 km que separam um posto de gasolina de outro quando o pavimento mexeu. S parou o carro com a rapidez de quem esteve o tempo todo alerta, esperando o pior acontecer–– sei que estivemos assim nas últimas semanas, sem baixar a guarda por um único momento, mãos formigando debaixo do travesseiro, vigiando os lado pelos quais a morte pode vir, sabendo que ela é um cachorro na porta que nós alimentamos uma única vez, arrastando repetidamente as patas pela madeira, seguindo-nos por todo lugar que vamos, sentido nosso cheiro como se fosse um fio que nos prende a ela. Fizemos votos de que seja longo o caminho. Que numerosas sejam as manhãs estivais, nas quais, com que prazer, com que alegria, entrarás em portos vistos pela primeira vez; mas sabiamos nossa prória natureza, acima de qualquer promessa.

Imediatamente nos olhamos, e apesar de tudo–– as noites (não) dormidas de olhos abertos e em constante estado de alerta,–– e nos encontramos sem saber o que fazer. A sementinha de esperança que tanto temíamos que fosse plantada, o medo de não estar preparado para o pior quando o pior eventualmente acontecer, parecia ter criado um broto entre nossos corpos na cama, nas mochilas que fizemos para a viagem, e todos os pequenos momentos, agora, pareciam apodrecer em nossas cabeças deixando um amargo gosto na boca, de ódio a si próprio, apontando todas as vezes em que fui estupido, estupido, como pude deixar isso acontecer. 

Ele, lendo a minha mente, farinha do mesmo saco e tudo mais, só tirou uma mão do volante e disse, vamos ver o que foi, saindo do carro segurando a chave entre os dedos com firmeza. Do lado de fora, olhamos ao redor e não vimos nenhum sinal de perigo, e olhei para ele, tendo uma conversa silenciosa naquele relance, como se disséssemos, será que estamos tão quebrados a ponto de ter imaginado isso? Que estamos com tanto medo de seguir em frente que estamos alucinando uma pedra no caminho? Mas ele deu de ombros e apontou com a cabeça na direção do posto mais perto de nós. Era igualmente adorável e frustrante a maneira que tentava parecer destemido para que eu me sentisse seguro.

Só havia uma pessoa no lugar. Uma moça de cabelos curtos cuidando da conveniência que me lembrou você. Pedimos ambos um café a ela quando entramos e no processo de fazê-los, um barulho crescente fez com que nós três virássemos em direção ao vidro, olhando para o lado de fora. Pequenas massas vermelhas caiam do céu, batendo no chão num baque, e a moça do balcão suspirou, derrotada, como quem diz ah, de novo não…, e se virou para pegar uma vassoura e pá que descansavam contra a parede. Eu e S nos encaramos (mais uma vez) enquanto ela movia para o lado de fora, ambos paralisados e confusos, e S perguntou com uma voz descontroladamente aguda antes que a mulher abrisse a porta de vidro, de novo?!

Ela colocou a cabeça do lado de fora pela porta, olhou para o céu, e disse, é, desinteressada, essas merdinhas vem caindo a semana toda. Essa época do ano é um saco para manter as ruas limpas. Eu e S nos olhamos de novo e debatemos a situação sem usar palavras. Suspirei, aceitei meu destino e andei para perto dela, do lado de fora. O que saiu da minha boca foi um simples "que porra é essa," pego de surpresa pelas coisas caidas na calçada. Pequenos bichinhos, morcegos-abelhas menores que a palma da mão, vermelhos como carne pura e mais nada. Senti meu estômago inteiro voltando pelo esôfago. Você os acharia adorável, se não estivessem mortos espatifados no chão. A moça deu de ombros e voltou para dentro com a vassoura.

"Acho que ainda vai chover mais", disse, ao devolver a vassoura para a parede, e voltou aos nossos cafés. "Estão de viagem?" perguntou, educadamente fazendo conversa, sem perceber que estávamos realmente em choque. "Sim," S respondeu, quase que fora de si, e se sentou no banco na frente do balcão. Olhou para mim e respondeu minha cara de confusão com um simples dar de ombros, deixando-se derrotar pela situação absurda. Tive que me juntar a ele. Ela continuou, "não é muito bom dirigir nesse tempo," e nos entregou xícaras de café. "A não ser que tenham um limpador de parabrisa potente!"

"Não muito," falei, agradecendo pela sensação do café quente em minhas mãos me mantendo no momento. Queria poder te dar qualquer outra informação. Se você tivesse vindo, saberia as perguntas certas pra fazer para aquela moça. Mas eu e S estávamos tão confusos e tão exaustos que decidimos que o melhor que poderíamos fazer naquele momento era aceitar e esperar. Tudo ficou estranhamente calmo–– estranho para nós, você sabe. A moça do outro lado do balcão estava apenas sentada lendo um livro de bolso, um pequeno rádio tocava alguma estação de músicas semi-reconhecíveis, e nós só tínhamos que esperar o tempo passar. O que quer que fosse aquele tempo. 

Eventualmente me levantei para olhar ao redor. Você sabe como eu sou com tempos de espera e mãos vazias. Era uma conveniência perfeitamente comum. Fui olhar o lugar onde estavam os biscoitos recheados, S se manteve sentado mas esticou o braço para girar uma daquelas estantes, onde eles põem livrinhos e cartões postais e o que mais couber. Cheguei para ele mostrando um Passatempo, e o que ele tinha para me mostrar era uma foto de um buraco. Um fosso do tamanho de uma casa, cavado na terra ao lado da estrada. Você pode ver, está nas suas mãos. Letras engraçadinhas dizendo “bem-vindo!”. Franzi a sobrancelha e ri de nervoso. Ele virou o cartão postal para a menina, que tirou os olhos do livro, olhou para foto, olhou para nós, sorriu sem mostrar os dentes e voltou para o livro. Deus, por que isso estava acontecendo conosco. S perguntou, extremamente incerto, o que era aquilo. Ela franziu as sobrancelhas, sem entender muito bem a pergunta, e disse: O buraco. E então, felizmente, começou a captar o que estava nos deixando tão confusos, e continuou, é nosso melhor ponto turístico! Dizia isso com uma certa felicidade, como se ela mesma tivesse tido a ideia e feito o design do cartão. 

Acho que nossas reações não mostravam tanta empolgação quanto a dela, apenas dúvida e o senso de humor de que é tão ridículo que é engraçado, então num tom desapontado ela continuou, dizendo que costumava ser um hotel, bem pequeno e acabado, até que alguns anos atrás caiu terra abaixo. Ninguém estava lá dentro, ainda bem. É o que dizem. E agora temos o Buraco! (A empolgação voltou). E então: eu levaria vocês para vê-lo, mas é comum as pessoas ficarem meio presas olhando para ele, e aí vocês não perceberiam se começasse a chover, e quando menos esperassem seriam atingidos na cabeça por morceguinhos caindo de quilômetros de altura. Não seria bom. 

Disse isso sem oscilar a felicidade em sua voz.

Você costuma dizer que eu e S temos uma linguagem própria só de saber o que o outro está pensando pelos gestos, e normalmente eu concordo, e é algo bom com que posso contar, saber que não preciso sempre dizer as coisas em voz alta para ser entendido, mas dessa vez, ah, não, dessa vez ele estava falando uma língua muito diferente, ou se não estava, então estava fazendo isso apenas para me irritar, apesar de eu não conseguir arrancar essa confissão dele até agora, pois depois que a menina falou isso ele disse, ah, acho que conseguimos prestar atenção. Eu olho pro céu, você olha pro buraco, e vice versa. Não é? Ele disse isso para mim. O rosto dele dizia tudo, você sabe que dizia tudo, e ele estava se divertindo tanto vendo meus olhos arregalarem. Então se virou para a menina e perguntou, onde fica, queremos ver. 

A moça, interpretando a empolgação no rosto de S de forma muito inocente, suspirou e se levantou da cadeira. Sigam-me, disse, e deu dois passos para trás e abriu a porta que ficava por trás do balcão. Estou sobrevivendo na ideia de que, nos nanossegundos em que ela fez o movimento de abrir a porta, S se arrependeu de absolutamente tudo, e pensou merda, merda, não valeu a pena, eu matei nós dois, meu deus, eu nos matei por uma brincadeira boba, porque agora essa menina está abrindo essa porta e algo muito ruim vai sair, e vamos ser atacados por algo horrivel, ou vamos ser sugados por um buraco negro, ou algo assim. Foi mais ou menos o que passou pela minha mente, e a forma que tensionou o corpo me dizia que pela dele também, mas meu trágico triunfo não durou muito, pois do outro lado da porta havia apenas o lado de fora, uma lata de lixo, e um enorme buraco.

    Eu e S nos olhamos e tentamos nos perguntar, e agora?, enquanto a moça se apoiava na porta, deixando-a aberta, e olhava para o abismo como quem observa um gato fazendo algo adoravelmente engraçado. Mas foi exatamente como você acha que foi–– ficamos uns 5 minutos alí, olhando para o buraco, ele olhando de volta para nós, nada extraordinariamente transformador, e no fim daqueles cinco minutos a menina olhou para o céu com mais interesse e falou que provavelmente não ia mais chover hoje. Pagamos pelos cafés e pelo cartão postal e pelo biscoito Passatempo e ela nos deu uma pazinha por conta da casa para tirar os bichos dos vidros do carro. Encantador.

Foi assim que começou, e talvez até você receber isso o próximo cartão postal já tenha chegado também, de onde quer que ele seja, mas é só o começo, e já vamos te ver. Por favor, não seja engraçada e coloque tudo isso numa avaliação super longa e suspeita do local na internet, mas se for fazer isso, por favor coloque apenas 4/5, atendimento excelente, atração confusa, provavelmente terminaria no fundo daquele buraco se ficasse por lá por mais 5 minutos.

Te amo, até logo.

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