a aventura de quarentena

originalmente postado em 31/01/2020

Clara tirou seus olhos da janela e suspirou - nenhum sinal de seu computador novo. O site em que tinha rastreado o caminho do pacote dizia que a encomenda poderia chegar a qualquer momento, e ela havia se segurado à esperança de que era dele que precisava para salvar seu monótono verão. As aulas tinham acabado há quase uma semana e Clara não havia feito muito. Ela estava entediada. Os pisca-piscas do seu quarto que brilhavam fraco e o silêncio em sua casa estavam simplesmente errados - não era assim que seu verão deveria ser. Ela se sentou na cadeira de rodinhas na frente de sua escrivaninha e seu celular vibrou em cima da mesa com uma mensagem - seus amigos discutiam algo em seu grupo. Ela pegou o aparelho e pensou.

Ei”, Clara enviou, interrompendo e ignorando a conversa em andamento para externar a ideia inusitada que acabava de ter tido. “Vamos viver uma aventura de verão.”

 Ela não sabia exatamente no que consistia uma aventura de verão - praia, música, paisagens bonitas e sair de casa? - muito menos seus amigos, mas os planos para o verão surgiram naquele momento. Clara prendeu o que conseguiu de seu cabelo curto num pequeno rabo de cavalo, que, ao olhar-se no espelho do seu quarto, percebeu parecer mais com um coqueirinho, e saiu em direção a cozinha. Ela fez café, e olhando a cidade pela pequena janela na sua frente, se perguntou o que a esperava nos próximos dias.

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A praia de Ponta Negra se estendia pela esquerda e pela direita de Mila, o morro do Careca de um lado e centenas de barracas quase afogadas pela maré crescente do outro, e ela sentou na cadeira de plastico e esperou os amigos chegarem enquanto o sol das três da tarde batia em sua pele. Ela havia chegado cedo para o primeiro dos planos que haviam feito para uma ‘aventura de verão’, torcendo para que o sol ainda estivesse forte o bastante para banhar-se nele. Mas seus amigos haviam planejado a atividade para a tarde, quando o sol se arrastava pelo horizonte e o mar subia cada vez mais perto de seus pés na areia molhada. Ela tirou os óculos escuros dos olhos, pois estes estavam praticamente inúteis no sol fraco do fim da tarde, e avistou seus amigos andando em direção a pequena mesa de plastico em que sentava. Clara, Lara, João e Pedro haviam chegado.

“Mila!” Clara disse, empolgada por estar começando as atividades e planos que havia feito para o verão. Cabelos curtos e maiô estampado, Clara Campos havia chamado seus amigos para sair durante toda a semana de férias que vinha pela frente. Ela se sentou em uma das cadeiras de plástico ao redor da mesa e os outros amigos comprimentaram a menina.

“A gente vai tomar banho?” João perguntou, acenando com a cabeça para o mar, que parecia cada vez mais cheio.

“Eu quero.” Mila disse, enquanto Lara e Pedro resmungavam, repulsos com a ideia de entrar no oceano. Pedro - ou Falcão, como o chamavam, por causa de seu sobrenome e a quantidade anormal de Pedros no grupo de amigos, usava uma camisa de manga longa, nada praiana, e, inusitadamente, havia trocado sua usual calça jeans por uma bermuda. Ele havia, pelo menos, aparentemente, feito um esforço. Lara, apesar de usar roupas mais socialmente aceitáveis para uma ida à praia, não parecia animada com a ideia de molhar suas roupas e ter que lidar com as consequências disso depois que saísse da água. Mila e Clara, entretanto, tiraram as peças de roupa que não pretendiam entrar na água e foram juntas em direção ao mar, procurando as águas claras e menos vazias que beiravam o Morro do Careca.

 Lara observou as duas amigas saindo de perto de si, Falcão, e João, famintas para viver um verão menos depressivo.

“Meu Deus, o que eu to fazendo aqui,” Lara disse, sentada na cadeira branca de plastico e evitando que as ondas que chegavam perto dela atingissem seus pés. Falcão e João riram abafado do comentário irritado da menina. Lá longe, Falcão podia ver dois pontos juntos dentro do mar. Não lhe parecia muito agradável. Ele cruzou as pernas em cima da cadeira de plástico, evitando também que o mar o tocasse.

“Vocês vão pra Sofia, depois?” a menina perguntou, se referindo ao que tinham combinado para depois da praia. A casa de Sofia Hazin, que estudava com algumas das pessoas do grupo, era repleta de plantas, cachorros, e uma quantidade de gatos que Lara ainda não havia conseguido entender. O plano era ir para lá assim que saíssem da praia, para jogarem jogos e pedirem pizza. Lara mal podia esperar para o momento chegar. A areia a irritava e não havia muito para fazer na praia nessa situação.

“Todo mundo vai, eu acho.” Falcão respondeu, enquanto tentava impedir seus longos cabelos pretos de baterem no rosto - uma missão impossível, pois estava sentado contra o vento e nada parecia conseguir controlar seu cabelo.

“A gente vai junto, então?” ela perguntou para ambos os meninos e eles acenaram com a cabeça. Lara tirou seus olhos dos menino e viu que, atrás deles, mais de seus amigos chegavam. Guilherme e Sabrina andavam em direção a mesa branca de plastico com suas roupas de banho.

“Cadê Clara?” Guilherme perguntou, quando chegaram na mesa e se encontraram.

“Já entrou,” João respondeu. “Bora?” ele convidou, e, quando Guilherme e Sabrina concordaram com a cabeça, se levantou e tirou sua camisa. Guilherme fez o mesmo e Sabrina já estava pronta. Os três andaram pela areia em direção ao Morro, em direção a Clara e Mila. 

“Britinho vem?” Sabrina perguntou enquanto os três caminhavam, se referindo a Eduardo Brito, cuja probabilidade de aparecer na praia era mínima, em qualquer ocasião.

“Acho que não. Talvez ele vá pra Sofia depois.” João a respondeu. Sofia e Eduardo, assim como Sabrina, moravam extremamente perto uns dos outros. O Conjunto Dos Professores era constantemente palco de encontros do grupo.

 Guilherme, que comia uma banana que havia acabado de tirar do bolso de seu calção, franziu a sobrancelha. “A gente vai pra Sofia?”

“Você não leu o grupo?” João disse. Guilherme negou com a cabeça e os três começaram a entrar no mar. Guilherme correu para jogar a casca da banana no lixo mais próximo e então de volta a Sabrina e João, entrando cada vez mais fundo na maré cheia e mais perto de Clara e Mila.

“E basicamente é essa a história” Mila diz a Clara quando eles se aproximam. Elas veem sua chegada e interrompem a conversa que estavam tendo. “Guilherme!” ela diz, quando vê o menino se juntando a elas no mar.

“Mila!” ele responde, logo em seguida mergulhando em uma pequena onda.

O fim da tarde passa num piscar de olhos - os cinco conversam e nadam na praia até que o sol não está mais lá, e as luzes dos estabelecimentos na beira da praia refletem nas ondas em cores neon. Quando voltam à mesa, Lara e Falcão conversam entre si e Lara comia um crepe.
“Finalmente,” ela disse, quando os viu chegando. “Ei, eu nao divido Uber com quem estiver molhado.”

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“A gente devia ir de novo amanhã,” Guilherme comentou. Todos sentavam ao redor da sala de Sofia - Sabrina, João, e Guilherme em um sofá, Eduardo e Mila no outro, Clara, Lara e Falcão nas almofadas espalhadas pelo chão.

“Pode ser,” Clara disse, levantando-se nos cotovelos para olhar para ele. “É sua vez.”

“Ah.” Guilherme parou para pensar. Cada um deles tinha um papel colado com fita adesiva em sua testa. O de Guilherme dizia ‘Jesus Cristo’. “Eu sou um animal?”

 Eduardo, que exclusivamente nao tinha papel nenhum em sua cabeça - ele havia se recusado a jogar - ignorava a brincadeira e mexia o celular. Ele se aproximou de Mila, que tinha “aflição” escrita em sua testa, e a mostrou uma foto.

“Ei, olha isso,” ele disse em voz baixa. Seu instagram estava aberto na foto de uma menina aleatória.

“O que?” Mila perguntou, sem entender por que ele havia chamado atenção a foto.

“Toda vez que eu olho para Eduardo ele ta fofocando,” Lara disse, antes que o menino pudesse responder. Ele resmungou e seu celular vibrou. Os olhos de Mila foram levados ao aparelho e, no topo da tela, uma notificação de Pedro Gois havia chegado. O segundo Pedro do grupo, Gois nao ia a muitas das reuniões, mas todos gostavam dele. Era impossível não gostar.

“Por que você tá falando com Gois?” Mila perguntou, achando a dupla inesperada.

Ele deu de ombros. “A gente se fala.”

 Mila sabia que não ia conseguir mais nenhuma informação do menino. Ele era, muitas vezes, um mistério a todos ao seu redor.

“Eu vou embora.” ele disse para o grupo, quando Mila não disse mais nada.

“Já?” Clara indagou, apesar de já ter passado da meia noite. Caixas de pizza e cartas de baralho se espalhava pelo chão, mostrando uma noite já vivida por horas de jantar e jogos.

“Eu vou também,” Sabrina disse, tirando o papel de sua testa e lendo, em voz baixa. “Neurônios… eu nunca ia acertar isso.”

“Amanhã, então?” Guilherme perguntou ao grupo de amigos que lentamente se levantava, num acordo não verbal de que era hora de ir embora. “Praia, de tarde?”

“Sim,” Clara amarrava o cadarço do seu tênis, e então virou a cabeça para Eduardo, que apenas esperava seus pais chegarem para o levar para casa. “Ei, Britinho, vai amanhã, por favor…” o tom de sua voz era uma irônica súplica, apesar de realmente querer que o menino fosse. Independente de tudo, a presença de Eduardo fazia a saída ser diferente, mesmo quando, em momentos como aquele, ele não participasse de um jogo, e, uma atividade frequente, fofocasse com quem estivesse perto. Ele era influente e engracçado, excêntrico e criativo.

 Eduardo suspirou e desistiu. “Tá.” ele disse.

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 No outro dia, entretanto, ele acordou arrependido de ter aceitado ir à praia. Eduardo se levantou e pegou seu celular da mesa de cabeceira, seus olhos ainda pesando de uma noite curta de sono - férias clamavam por madrugadas gastadas jogando os mais diversos jogos em seu computador. Algumas mensagens apareciam no aparelho. Um ‘boa noite’ nao lido, de um certo amigo que não via há algumas semanas, e seus amigos conversavam bem naquele momento. torcendo para que as mensagens fossem de todos desistindo da ideia de ir, a essa hora, para a praia, ele abriu o grupo.

Mila

A gente não vai mais então?


João

Tem literalmente um cadáver no mar


A mensagem de João surpreende Eduardo, e ele envia um simples “que”. Confuso pelo texto do menino, ele é respondido com um link para um site de notícias.

 Homem aparece morto na praia de ponta negra - motivos ainda não conhecidos.

O resto da notícia falava de como os primeiros frequentadores da praia naquela manhã haviam sido surpreendidos pelo cadáver de um homem desconhecido no mar, próximo ao Morro do Careca. Após o corpo ter sido recolhido e examinado, ninguém havia conseguido dizer o motivo da morte e do paradeiro. Apesar de seus calcanhares mostrarem sinais claros de agressão - partes da pele de sua perna quase que estilhaçadas, marcas esquisitas e desconhecidas rasgando seu pé - não sabia se dizer ao certo o que havia levado o homem ao óbito, muito menos ao mar. Após exames, as teorias eram de algum ataque animal, mas ninguém sabia exatamente de qual - as marcas eram desconhecidas, despadronizadas.

 Eduardo franziu as sobrancelhas ao ler a notícia e voltou a dormir, tranquilo, sabendo que não iria mais a praia naquele dia.

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Os olhos de Mila passavam pelas linhas do livro, mas sua mente divagava. Ela não conseguia parar de pensar na foto da notícia que tinha compartilhado com seus amigos mais cedo - Elias Gomes, um homem adulto, nascido no Cabo Verde, que morava na cidade de Natal há 18 anos, e as feridas em seu calcanhar. Ela lamentava a morte do homem, claro, mas o que mantinha o acontecimento em sua cabeça era o mistério que o cercava. O fato de que ninguém sabia nada sobre como o pobre Elias havia sido levado a óbito, muito menos sobre por que estava no mar. 

 Ela fechou o livro, aceitando que não conseguiria lê-lo nesse momento, e abriu seu celular, procurando a notícia e a foto do corpo. Parecia sadistico, seus olhos examinando as feridas e as marcas que iam do pé à metade da panturrilha do homem, mas Mila só queria tentar desvendar o mistério. Era sobre isso que pensava quando a ideia da aventura de verão chegou até ela - um ideal de aventura alimentado por livros e filmes de jovens personagens que começava com sol, com cores, com o mar claro e azul, e terminavam em mistérios, em terror. 

 Talvez ela devesse parar de tentar viver uma história fictícia. Ela bloqueou o celular e olhou para a rua pelas janelas de vidro na frente da mesa em que sentava. Dezenas de pessoas andando de um lado para o outro, decorações natalinas os acompanhando em suas compras também festivas. Ela gostava da praia e estava feliz com a ideia de ir para lá hoje novamente, mas o centro da cidade era um de seus lugares favoritos. No caminho para a lanchonete que se encontrava agora, ela havia parado em lojas, encontrado um amigo antigo, sentido o sol quente do meio dia no seu rosto, e agora esperava seus três amigos chegarem, para acompanhá-la pela cidade até um sebo de livros que havia visto numa vinda passada a essas ruas, uma casa estreita com livros antigos da cabeça aos pés, ao brechó mais próximo, e a um breve lanche de coxinhas e chás mate.

 Mila observou Clara passando pela janela da lanchonete até chegar na porta de vidro e abri-la. Ela sorriu enquanto a outra menina se aproximou da mesa em que estava sentada e a comprimentou.

“E aí,” Clara se sentou na cadeira na frente da de Mila e tirou sua pequena mochila dos ombros. “Desculpa a demora.”

“Tudo bem, eu tava ocupada sem conseguir parar de pensar no homem que morreu na praia.

Clara riu do tom de voz da outra menina, que quase se exaltava.

“Ei, mas é tão esquisito!” Ela comentou.

“Eu acho que faz parte da nossa aventura de verão.” Mila brincou.

“Eu sei que você quer viver um it: a coisa, mas a gente não vai atrás do monstro que atacou os pés de Elias Gomes.” Clara disse o nome do homem como se fossem conhecidos.

“Monstro?” Mila questionou, metade brincando metade não.

“Obviamente não, mas parece que é esse tipo de aventura que você quer.” 

 Nesse momento, a porta do lugar se abriu novamente, e Guilherme e Sofia entraram. Mila e Clara se levantaram e comprimentaram os dois, e os quatro seguiram lanchonete afora, cidade adentro. 


 


 A mochila de Sofia estava um pouco mais pesada agora que ela havia comprado algumas camisas no brechó. As ruas que o separavam da loja de livros eram longas e músicas natalinas soavam por todas elas. A caminhada até o sebo foi quente, mas a visão do estabelecimento estreito e repleto de livros por todas as paredes empolgou os quatro jovens.

 Sofia entrou e seguiu reto pela direita da loja, seus dedos passando pelas espinhas dos livros de couro nas estantes das paredes. Guilherme a seguiu logo atrás, lendo os nomes dos autores atrás de algum que despertasse seu interesse.

“Tem Dante aqui” Mila disse, alcancando um livro de aparência antiga na estante do meio na ponta dos seus pés. 

“Se você vir Jorge Amado,” ele disse, do outro lado da estante, onde andava com Sofia. “Me avisa.”

 O cheiro de livros velhos perfumava o ambiente ao mesmo tempo que fazia Mila espirrar, e os corredores estreitos entre as estantes ficavam mais estreitos com as pilhas de livros no chão que precisavam desviar. Ali, era praticamente impossível procurar por livros - era necessário, simplesmente, acha-los.

“H.P. Lovecraft,” Guilherme murmurou, lendo o nome do autor estadunidense num livro que tocava.

“É o Chamado de Cthulhu?” Clara se aproximou, desistindo de sua solitária jornada por Virginia Woolf.

“É.” 

“Guilherme, tem Jorge Amado aqui,” Mila chamou baixo do outro lado do Sebo. O menino foi até ela.

Sofia havia dado a volta na loja e agora via os livros logo na entrada. O dono do sebo sentava numa cadeira lendo logo na frente, um velho magro com uma cerveja na mão. Clara se aproximou da menina, H.P Lovecraft na mão. Sofia olhou para o livro nas mãos de Clara.

“Você vai levar?”

“Nao sei. Parece interessante mas eu nao sei se eu gosto desse tipo de coisa. Eu to segurando só pra não perder, caso eu queria.” Sofia acenou com a cabeça, entendendo. “É capaz de Mila dizer que é isso que matou o homem lá na praia.”

O dono do sebo pareceu ter escutado a fala casualmente e olhou para as duas meninas conversando.

“Vocês sabem o que aconteceu com ele?” o homem disse.

A inusitada pergunta do homem assustou as meninas, que olharam para ele confusas. Ele parecia ter uma certa idade, cabelos brancos quase escassos refletindo sua pele enrugada. Ali, na luz fraca do sebo e rodeado de livros, o velho parecia um mago. Não esperando uma resposta das meninas, ele continuou.

“Vocês são novas demais pra saber, é claro, com esses rostos jovens. Isso foi algo que aconteceu muitos anos atrás, quando eu era criança. Eu me lembro bem. Foi a mesma coisa - um homem na praia, flutuando, marcas esquisitas nas pernas, como se tivesse lutado com os pés. Ninguém consegue dizer a causa da morte, ninguém vai pra praia por umas semanas… Depois de um tempo todo mundo esqueceu, mas eu não.”

“Isso já aconteceu antes?” Sofia perguntou, interessada na história do homem.

“Ah, já. Eu tinha 9 anos, e vi o homem com os meus próprios olhos. Eu cheguei na praia bem cedo, e lá estava ele, boiando e sem vida. Eu tentei acompanhar tudo que tentavam descobrir sobre o caso, mas tanto os jornais quanto a fofoca eram inúteis. Aí eu mesmo, com meu irmão, fui investigar. A gente pegou um bote e remou até onde o homem tinha sido encontrado, isso algumas semanas depois, de manhã cedo, no nascer do sol. Saímos de casa sem nossos pais verem e fomos andando até o morro. Quando a gente chegou lá, bem longe da beira, o barco tremeu, como se tivessem mexendo ele por baixo.”

Clara franziu as sobrancelhas, tentando decidir se o homem estava inventando tudo naquela hora, contando uma história de algum dos milhares de livros que vendia ou se era apenas real. A última opção lhe pareceu impossível. Sofia, entretanto, ouvia a história concentrada.

“A criatura virou o barco, e eu e meu irmao caimos no mar. A gente nadava em direção ao bote de volta mas alguma coisa fazia o trabalho contrário, puxava a gente para o fundo. Eu lutei, e consegui nadar até o barco e subir nele, mas quando eu vi, meu irmão tinha sumido debaixo da água.”

Enquanto o homem contava a história, Mila e Guilherme haviam deixado os livros que viam juntos e haviam se juntado as meninas para ouvir o acontecido.

“Eu remei de volta a praia bem rápido, pedindo ajuda. Passou o dia todo e nenhum sinal dele. Era todo mundo procurando, pescadores, policiais. O corpo nunca apareceu. Isso que é mais estranho, que o corpo não apareceu no outro dia, boiando sem vida no mar.”

“Calma, isso é real?” Clara disse, incrédula.

“Real como a vida, jovem.” o velho subiu a barra da sua calça e no seu calcanhar eles viram, claro e vivo, marcas estranhas cicatrizadas. Algumas das marcas pareciam garras, outras pareciam cortes, outras eram cicatrizes em formatos estranhos. Guilherme suspirou em surpresa, e Mila chegou mais perto para observar os machucados. As feridas cicatrizadas do velho e as recentes do homem morto tinham, sem dúvidas, a mesma origem.

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Os quatro caminharam até a pequena lanchonete de chá mate, uma casa bem frequentada e quase sempre lotada. O caminho do sebo até o Mate foi estranhamente silencioso - todos, sem dúvidas, estavam pensando na história do homem. Bom, talvez todos. Era difícil saber o que Guilherme pensava, ou se ele pensava de qualquer modo.

 Uma única mesa estava livre no local - os quatro sentaram nela antes que outra pessoa pudesse. Por alguns segundos, o silêncio pesou. Mila resolveu quebra-lo.

“Vocês acham que é real o que o velho disse?” ela torcia, por dentro e em segredo, que sim.

“É claro que não é real, você tá louca?” Clara indagou.

“Eu nao sei no que acreditar, não.” Guilherme disse.

Mila se indignou com o ceticismo de seus amigos. “Mas as marcas estavam bem ali!”

“Elas podem ter sido de absolutamente qualquer coisa.” Clara disse.

“Eram iguais às da foto do homem que morreu hoje.” Sofia apontou. Clara bufou, sem acreditar que estavam realmente discutindo aquilo.

“Meu Deus, gente? Vocês acham que tem um monstro no mar agora?” 

Guilherme deu de ombros enquanto Mila disse “Sim!”.

“É que parece ridículo, óbvio, mas eu não consigo dar outra explicação pro que o homem disse.” Sofia, sensata.

“Vai que é um plano de marketing pra vender algum livro.” Guilherme brincou. 

Mila, apesar de não hesita em acreditar na história fantástica, podia concordar que era praticamente impossível. Ela deu de ombros e se levantou para pedir um chá mate, e o assunto do monstro morreu de vez.


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 O condomínio de Pedro Vitor era tudo que a aventura de verão precisava, com suas quadras de esportes e piscinas, e o grupo de amigos andava em direção a piscina principal depois de um jogo competitivo e cansativo de queimada. O sol quase se punha e, pela primeira vez no verão, o grupo quase inteiro se encontrava junto. Clara, bebendo água de sua garrafa desesperadamente depois de se empolgar demais nas atividades esportivas, Mila, lentamente se arrependendo de ter participado delas, sentindo seu corpo clamar por descanso. Guilherme e João, prontos para irem à piscina, Eduardo pronto para fazer qualquer coisa menos isso, andando lado a lado com Pedro Gois, conversando baixo um com o outro. Victor Lima, com seus 1,90 de altura e Lorena Pinheiro, com seus cabelos longos, andando de mãos dadas e na frente de todos eles Pedro Vitor, cabelos loiros e bochechas rosadas, guiando-os pela gigante área de lazer de sua casa. Falcão e Lara seguindo atrás, o grande grupo se sentou junto na mesa de plástico perto da borda da piscina.

“Tá tão gelada” Clara afirmou, colocando a ponta de seu pé na água azulada. Guilherme agachou-se e molhou sua mão, testando a temperatura.

“Ta mesmo”

“Tem uma piscina aquecida, lá em cima,” Pedro Vitor disse, apontando com a cabeça para a cobertura do prédio que se estendia atrás da grande piscina. “A gente pode ir lá.”

“E você só diz agora?” Mila disse.

“É que essa é maior.”

“Mas a outra é aquecida!”


 O grande grupo coleta suas coisas, que haviam jogado na mesa de plastico poucos segundos atrás, e seguem em direção ao prédio, conversando o caminho inteiro, passando pelo estacionamento, o elevador e, então, vinte andares depois, chegando na cobertura.

 A pequena piscina aquecida se encontrava vazia, e, aos poucos entrando na área de lazer ao redor dela, via-se uma possível razão: suas águas, verdes, escuras, impossível de ver o fundo. 

“Tem no mínimo 7 doenças aí dentro,” Lara comentou, mas sua afirmação aparentemente não a impedia de nada, pois ao mesmo tempo levantava sua camisa revelando um maiô por baixo.

“Não tá suja,” Pedro Vitor prometeu, “só esquisita. Deve ser de produto de limpeza.”

 A parte do grupo que planejava banhar-se deu de ombros e começou a se despir de suas roupas que não iriam ser molhadas. Eduardo e Sabrina sentavam nas cadeiras ao redor da piscina coberta, longe da água.

“Cuidado com o monstro.” Mila disse, rindo, quando Pedro Vitor começou a entrar na piscina.

“Monstro?” ele ri confuso.

“Olha o estado dessa piscina,” ela apontou, brincando. “Não dá pra ver nada. Sem dúvidas tem um monstro alí do outro lado. O monstro de Ponta Negra.” O rosto de Pedro Vitor foi de uma expressão de entendimento para uma exatamente contrária.

“Você não ouviu do monstro da água que vai matar todo mundo?” Falcão diz, rindo debochado.

Pedro Vitor balanca a cabeca num ‘não’.

“O monstro que matou aquele cara em Ponta Negra,” Guilherme disse, lembrando-se do que o velho da loja de livros havia lhes contado. Clara e Mila haviam contado a história esquisita para algumas outras pessoas do grupo. As que não sabiam passaram a saber, quando Guilherme contou a história do homem do Sebo enquanto entravam na piscina. 

“Mas por que o monstro estaria na minha piscina?” Pedro Vitor perguntou, quando Guilherme terminou a história.

“Obviamente Mila tá brincando,” Victor diz, imerso na água extremamente quente da piscina até os ombros. “Porque não tem monstro nenhum.”

Mila dá de ombros. Talvez não tenha.

“Não brinca com isso, Victor,” Falcão diz rindo. “Mila leva muito a sério.”

“Ta bom, me ataquem,” Mila revira os olhos, entrando na piscina mas se mantendo no lado da escada, na metade da piscina em que a maioria se encontra. 

 A piscina não era grande, mas o lado oposto parecia ser longe demais, como se a piscina se estendesse num corredor escuro cujo final misterioso ela não queria alcançar. A água escura deixava difícil de ver os próprios pés imersos, quem dirá o outro lado. Enquanto ela observava a água estendendo-se a sua frente, Victor percebeu seu olhar fixado e riu, andando em direção a ponta oposta da piscina e chamando sua atenção. 

“Me salva, Mila, o monstro vai me matar,” ele disse, nadando lentamente em direcção ao outro lado.

“Você vai morrer, Victor,” Mila disse ao menino, entrando na brincadeira. A história do velho do sebo poderia ser real, poderia haver uma criatura responsável pela morte daquelas pessoas, mas não tinha nada a ver com a pequena piscina aquecida do condomínio de Pedro Vitor.

“Meu Deus!” ele disse, alcançando a borda. A água ao seu redor era fosca, quase cinza. Mila prendeu a respiração, e pareceu que tudo havia ficado em silêncio. Era um medo antigo, sem sentido, mas o lado oposto da piscina sempre parecia, para Mila, como algo perigoso de se alcançar. E então o silêncio foi quebrado por um grito de Victor, que mergulhou na piscina e começou a se debater contra as águas. Por alguns segundos Mila quase se desesperou, mas o menino emergiu rindo e olhando para a cara assustada dela.

“Mila! Eu to só brincando!” Ele sente pena da menina e nada em direção a ela, para lhe dar um abraço. Pelo menos ele tenta - assim que começa a deixar seu corpo na horizontal, para nadar, ele sente uma força na perna que levanta, e algo o puxa para trás.

“Para, Victor,” Mila diz. Ele abre a boca para responder, mas seu corpo é puxado para o fundo da piscina.

Mila pensa que o menino mergulhou novamente.

“Tá bom, já, Victor,” ela diz, quando a água mantém-se parada na superfície. “Alguém levanta esse menino.”

 Pedro Gois ri e vai até a ponta, atrás do menino que tenta botar medo em Mila. Ele nada até o ponto onde Victor mergulhou e franze a testa. A largura da piscina é pequena o bastante para que seja possível cobri-la com um simples movimento de pernas ou braços, que Gois faz, e seu rosto fica pálido.

“Ele não tá aqui,”

“Para de fazer medo, Gois” Sabrina diz da cadeira em que está sentada, não levando nada a sério.

Ele fica sem palavras, olhando para a menina e com uma expressão assustada.


 Victor Lima havia desaparecido no fundo daquela piscina, deixando nenhum rastro, assim como o que quer que tenha o levado.



 Victor estava desaparecido há dois dias. As horas de desespero, medo e confusão que seguiram o mistério na pequena piscina haviam marcado cada uma das pessoas do grupo presente, deixando-os num estado de terror cuja falta de respostas os aterrorizava a cada passo que davam. 

 A falta de um corpo para dar Victor como morto fez o grupo decidir que iriam simplesmente se fingir de desentendidos. Não que estivessem entendendo alguma coisa, mas quando a mãe de Victor ligou para Lorena às 11 da noite daquele dia, ela a disse apenas o que haviam combinado - que não o havia visto o dia inteiro. Agora, mensagens eram compartilhadas em todas as redes sociais sobre o desaparecimento de Victor Lima, alto, moreno, visto pela última vez saindo de casa dois dias atrás. 

O grupo e a cidade tinham em comum não saber o paradeiro do corpo de Victor, mas os jovens que haviam presenciado seu corpo sendo puxado para o fundo da água sabiam - no mínimo, sentiam - que se o corpo voltasse, não seria com vida. 

 Deitada em sua cama e segurando seu celular em seu ouvido, Lara lia em voz alta a mensagem que havia recebido da sua mãe.

“... ‘se alguém encontrar ele, por favor entre em contato com…’ e aí o número da mãe dele.” ela disse, para o menino a escutando do outro lado. 

“Eu não sei o que fazer com esse segredo, Lara.” João disse, o medo transbordando em sua fala. O grupo mal havia se falado nos dias que haviam passado, como se temessem que falar um com o outro tornaria o acontecido real, em vez de uma memória distorcida em suas cabeças. 

“A gente devia só… tentar esquecer. Ficar pensando nisso e tentando entender não vai fazer com que faça mais sentido.”

“Eu não consigo só esquecer. Victor morreu, Lara.”

“A gente não sabe se ele morreu.” João ficou em silêncio. “Não vale a pena ficar repetindo essa memória na mente.” apesar de sua opinião firme, Lara havia acordado no meio da noite em ambas as noites que haviam passado, suando e sonhando com o calor da piscina envolvendo seu corpo inteiro e a puxando cada vez mais para baixo. 

“Eu não sei se eu vou conseguir ficar em paz se eu nunca descobrir o que realmente aconteceu.”

Lara suspirou. “E você nunca vai ficar em paz se continuar pensando nisso.”

João resolveu não responder - discutir não levaria a conclusão nenhuma. Em vez disso, ele apenas disse:

“Eu sinto sua falta.”

‘Vem pra cá’,  Lara queria dizer. ‘Eu quero te ver.’, mas ela não iria conseguir olhá-lo nos olhos sem lembrar da água da piscina se mexendo quando Victor mergulhou, e então perfeitamente plana e intocada quando seu corpo foi imerso. 

“Eu também sinto a sua.”

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Os braços de Pedro Gois se abriram, procurando o menino pela água. Ele passava seus pés no fundo da piscina, tentando encontrar qualquer coisa que não fosse a água. Lá em baixo, os dedos de seus pés tocaram em algo duro. Ele mergulhou rapidamente, em busca do que quer que tenha tocado. Abrir os olhos embaixo daquela água era inútil - estava escura demais, e tudo o que via era cinza. Suas mãos tateavam cegamente no piso, e então ele segurou firme no que tocou e subiu de volta. A cabeça de Victor se encontrava em suas mãos, e subitamente o corpo inteiro do menino jazia boiando ao seu lado. Seus olhos vazios, seu rosto pálido e frio, contrastando com o calor da piscina. Em seus calcanhares, feridas vermelhas subiam em sua perna, arranhões e hematomas chegando até o seu pé. Gois olhou nos olhos mortos do outro menino. ‘Onde você está,” ele pensou, e encarou o rosto sem vida de Victor flutuando na água.

 As írises do menino, que encarava o teto, subitamente encaravam Pedro, e sua boca entreaberta se abriu de vez.

“Bem aqui.” A voz de Victor, clara como o dia, saiu da voz de seu cadáver. Pedro tentou correr, tentou nadar para o outro lado, para fora da piscina, mas seus pés eram puxados para baixo, para baixo, para o fundo, para o escuro,

 O toque de seu celular o fez abrir os olhos, e em vez de estar na piscina, ele estava apenas em seu quarto, a luz da rua entrando pela janela. Eram quatro da manhã e ele ofegava, tentando entender que tudo havia sido apenas um sonho ruim. Ele pegou o celular e atendeu.

“Pesadelo?” ele perguntou ao telefone, recuperando o fôlego, fechando seus olhos e tentando focar na respiração do outro lado.

“...Pesadelo.” Eduardo confirmou.

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 As abas no computador de Mila abriam-se como páginas num livro. Todas em páginas diferentes do arquivo de jornais e notícias de Natal pelos anos. Ela procurava por um padrão, uma semelhança, qualquer coisa que pudesse explicar ou pelo menos guiar a busca por uma resposta. Ela havia procurado por notícias que envolviam mortes no mar, ataques - qualquer coisa que poderia ter como origem o mesmo que havia matado o irmão do velho do Sebo, Elias Gomes, e talvez, se suas dúvidas estivessem certas, o desaparecimento - e provável morte - de Victor. 

 Era assim que estava lidando com o luto - não relendo conversas antigas com o menino, ou relendo músicas antigas que havia escrito inspiradas em seu finado amor pelo menino - não se fazendo ficar triste, não chorando e gritando e perguntando aos céus ‘por que’, não se culpando por tudo que aconteceu, mas sim seguindo em frente e tentando, ao mínimo, levar vingança à sua morte. Ela precisava descobrir o que aconteceu, e precisava se vingar, para amenizar a culpa e o medo que sentia no fundo. E se tudo isso a desse também a oportunidade de viver a aventura que tanto queria - por mais mórbido que fosse, por mais sadistico, ao custo da morte, do medo - ela não estava reclamando. Ela romantizava o terror ao seu redor e mascarava o luto com a necessidade de desvendar um mistério.


 Mila leu uma notícia de 1951, o jornal antigo digitalizado na tela em sua frente. A morte de um homem era noticiada, mas ela já conhecia a história - assim como o dono do sebo de livros havia contado, o homem, nomeado na matéria como Pedro Freitas, havia aparecido morto boiando no mar no raiar da manhã, feridas cobrindo seus calcanhares. Mesmo depois de todos esses anos, o mistério continuava não resolvido. Ela resolveu procurar por todos os mortos naquele ano e no seguinte, mas, que se encaixavam naquelas circunstâncias, ele era o único. O trabalho que isso a havia dado, de procurar por mortes em jornais antigos digitalizados em anos antigos, era maçante. Ela havia passado horas lendo notícias de 3 anos diferentes, e agora, não tendo encontrado nada que chamasse sua atenção, seus olhos doíam e sua cabeça ainda mais. Talvez, ela pensou, se eu tivesse alguém para me ajudar. 

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 Clara ouvia as teorias de Mila, a voz da menina soando por seus fones de ouvido. 

“E eu pensei que devem ter mais ataques, né. Hipoteticamente, digo, se fosse uma criatura a responsável por tudo isso. Porque, pelo que a gente sabe, duas pessoas morreram dessa vez. Não só uma.” Mila teorizava sobre o que procurava em sua busca por uma resposta, e contava a Clara o que havia procurado. Ela cogitava a ideia das duas mortes terem a mesma origem. “E eu sei que você provavelmente não acredita, mas você queria uma aventura de verão, né. Me ajuda.”

“Mila… Você tá indo longe demais. Você tá criando teorias sobre um monstro. Ouve o que você tá falando. Com certeza tem uma explicação científica pra tudo isso.”

Mila suspirou. “Talvez, talvez não. Você não precisa acreditar, só… Só me ajuda. Como se fosse uma brincadeira, um jogo. Finge que você acredita, só pra gente vê se consegue chegar em algum lugar.”

Clara cogitou por um momento. “...Ta. Talvez você consiga até me convencer de que realmente tem um monstro.” 

“Ótimo.”

“Você não achou nenhuma morte parecida com a de Elias e com a de… Qual o nome do homem que morreu em 51?”

“Pedro Freitas”

“E com a de Pedro. Mas… Se Victor…” ela parou um pouco ao dizer o nome do menino. Falar aquilo tão casualmente era assustador. “Se Victor foi a mesma coisa, ele não tá nos mortos. Você procurou por pessoas mortas por ataques de animais, ataques desconhecidos, afogados, com marcas estranhas, mas você procurou pelas pessoas desaparecidas nessa época?”

Mila suspirou. “Não. Não pensei nisso. Tá vendo, é por isso que eu preciso de você, Clara.”

“Eu procuro então. Talvez mais alguém possa ajudar.”

“Eu vou atrás.”

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 Lorena não saia da cama a alguns dias. Ela não dormia a alguns dias, também. Toda vez que fechava os olhos ela via Victor na piscina, mergulhando em questão de segundos, sumindo mais rápido ainda, e toda vez que tentava se levantar, ela percebia que estava andando em direção a uma vida sem o menino - sem seu namorado, seu melhor amigo, sem a pessoa que mais amava. 

 A única coisa que mantinha Lorena pensando, que fazia suas lágrimas cessarem pelo mais breve momento que fosse, era a vontade de encontrá-lo. Não fazia sentido, ela pensava, não fazia sentido o seu sumiço. Ela não queria se dar ao luto, então se dava à esperança. Ela iria encontrá-lo, custe o que custar. Então quando Mila mandou uma mensagem no grupo perguntando se alguém estava disposto a ajudá-la e Clara a descobrir mais sobre a morte Elias e o desaparecimento de Victor, Lorena levantou-se da cama e andou em direção à porta, às respostas, ao seu namorado. 

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 “Dara Hadrielle,” Clara ligou para Mila e disse assim que ela atendeu. “Em 1951, só alguns dias depois da morte de Pedro Freitas, considerada desaparecida depois de sumir de uma piscina pública sem explicação. Tentaram resolver o caso como se fosse um sequestro, mas nada batia. Pelo que dizem nas notícias, poderia facilmente ter sido o ‘monstro’. Eu achei alguns casos que podem se encaixar. Apesar de que, se tem algum padrão de por que o monstro pegou essas pessoas específicas, eu não sei te dizer. Não achei nada que todas essas pessoas têm em comum com Victor.”

“Dara Hadrielle,” Mila repetiu o nome, absorvendo as informações. “Por um momento eu pensei se o monstro só matava homens. Parece que não.”

“... Seria legal se fosse.” Clara brincou, sentindo um pouco de culpa por brincar com a morte de seu amigo - mas tudo aquilo ainda parecia muito irreal para ela. “Bom,” ela continuou. “Eu achei algumas pessoas que poderiam ter sido vítimas, mas é difícil dizer com certeza. Além do mais, eu passaria direto pela ficha de desaparecimento de Victor se eu não soubesse o que e realmente aconteceu, então com certeza tem gente que pode ter passado pela mesma coisa e a gente nunca vai saber.”

“Faz sentido,” Mila respondeu. “Então o que a gente sabe é…”

“Nada. A gente sabe que duas pessoas, com uns 70 anos de diferença entre eles, foram mortas por um ‘monstro’ e apareceram no outro dia mortas no mar, e a gente ‘sabe’ que algumas pessoas desapareceram debaixo da água talvez pelo mesmo motivo.”

 “É um começo. Inclusive, Lorena disse que queria ajudar. Ela tem um tio que tá envolvido no caso de Elias Gomes, e disse que ia tentar pegar informações com ele.”

“Ótimo,” Clara disse. “Talvez, no fim de tudo, ele tenha sido atacado por um tubarão e morrido. Sem monstro ou fantasia ou o que quer que você acredite que seja.”

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 Lara leu a mensagem de Mila no grupo e suspirou. Ninguém entendia que não adiantava - não adiantava ir atrás de padrões, de notícias antigas, de respostas: Victor estava morto, e nada traria ele de volta. Tudo que eles podiam fazer era esperar que os pais do menino perdessem a esperança, esperar que todos considerassem seu amigo como morto, tudo que eles podiam fazer era comparecer ao funeral e com o tempo seguir em frente. Lara não tinha as respostas, a explicação ou o corpo de Victor para provar que ele estava morto, mas o menino havia estado do seu lado desde a infância. Eles haviam crescido juntos, e ela sabia, sem dúvidas, que era o fim. O luto era tudo que lhe restava e a esperança era inútil, torturante e ludibriadora.

 Lara bloqueou o celular e colocou-o sobre a mesa. Ela estava na casa da sua avó, deitada no sofá, uma dor de cabeça crescendo em suas têmporas, o luto e o estresse estampado em seus olhos. Ela se levantou ao lembrar que o banheiro de sua avó tinha uma banheira, e a ideia de tomar um banho quente e demorado pareceu relaxante. 

 Lara foi até o banheiro e ligou a torneira da banheira, deixando a água morna chegar até o topo. Uma perna após a outra, Lara entrou, e, imersa até o pescoço, apoiou a cabeça na borda da banheira e fechou os olhos, mas a luz do banheiro ainda a irritava. Ela abaixou o corpo e entregou-se à imersão total. Com a cabeça inteira debaixo d’água, o silêncio e o escuro tomaram conta. Paz, enfim, Lara pensou. 


 Mas sua paz foi interrompida, e Lara não conseguiu emergir da água. Algo a puxava para baixo, a prendia na água, e apesar de suas costas tocarem a superfície da banheira, o fundo parecia ser cada vez mais profundo, e então, desvanecendo quietamente pelo escuro e pela água, sua respiração cessou e seu corpo desapareceu. 



 Quando João atendeu o telefone e ouviu a voz da mãe de Lara o perguntar se ele estava com a menina, pois ela havia sumido, João se preocupou. Ele repassou tudo que havia falado com Lara naquele dia, se ela havia dito que ia a algum lugar, se iria sair com alguém. Mas quando Carolina Brito disse que ela havia enchido a banheira da casa de sua avó e então desaparecido, João sabia exatamente o que tinha acontecido. A informação o derrubou como um copo caindo de uma mesa, cacos de vidro quebrando por todos os lados. Não havia outra explicação - Lara havia sumido assim como Victor, morrido assim como Elias. João tentou fazer com que sua voz não tremesse, não falhasse, e disse a Carolina o que haviam dito aos pais de Victor - que não sabia, que não havia visto a menina o dia inteiro. João deixou que ela fosse considerada desaparecida, deixou que conspirassem sobre por que dois jovens do mesmo grupo de amigos sumiram na mesma semana. Deixou que o mistério pairasse sobre o estado de Lara, e então avisou seus amigos que ela havia sido a nova vítima do monstro da água.

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“Eu já perdi um amigo. Eu já perdi… Eu já perdi Lara.” João respirou fundo, sentindo o peso de suas palavras. “Eu nao quero perder mais ninguém.”

Mila suspirou, o luto e o medo crescendo em seu corpo. “A gente não vai. Perder mais alguém, a gente não vai.”

O menino sentava no sofá de Clara, de um lado Mila e do outro Lorena. Clara saiu da cozinha carregando copos de água e entregou ao grupo em sua casa. Os quatro haviam se reunido lá para discutir suas teorias e descobertas, depois que João ligou para Mila dizendo que queria entender o que estava acontecendo e impedir o que poderia acontecer. Ele queria fazer parte daquilo, queria vingar a morte de Lara.

 Era só nisso que pensava.

 Lara, que alegrava seus dias, que segurava sua mão e o ouvia. Lara, que ele amava. Lara, que não estava mais aqui, e nunca mais estaria.

 João pensou na última vez que havia a beijado, que havia a abraçado, que havia dito que a amava - pensou em todas as últimas vezes que não sabia que seriam as últimas. Ele não perderia mais ninguém.

 Ela não queria que ele se envolvesse, que ele tentasse desvendar qualquer coisa, que ele tentasse salvar o mundo. Ela queria que ele se mantivesse a salvo. Mas era tarde demais, e João já estava imerso demais.

 

“Ele pode aparecer em… qualquer água?” João perguntou, ao grupo, cogitando a ideia, visto que o tal monstro havia atacado na praia, na piscina, na banheira.

“Eu vi um filme uma vez,” Mila disse. “bem trash, sobre o fantasma de um tubarão que podia aparecer em qualquer lugar que tivesse água, e numa cena um cara bebe um copo de água e o tubarão aparece lá, e entra dentro dele junto com a água que ele bebe, e explode o homem por dentro dele.”

“... E você acha que é assim que essa criatura funciona?” Clara perguntou, franzindo a sobrancelha.

“Era um filme bem ruim. Isso é a vida real. Não, Clara, foi só um comentário.” Mila revirou os olhos, sabendo que esperariam dela qualquer teoria ridícula. “Eu acho que… Eu acho que se um corpo estiver, ou pelo menos puder estar completamente imerso num corpo de água, a criatura está lá. O mar, uma piscina, uma banheira. Não uma poça ou um copo de água ou uma pia ou um chuveiro.”

“Faz sentido, eu acho.”

“Eu só não sei por que… o corpo dela e de Victor não apareceram. No mar, como o de Elias Gomes e o de Pedro Freitas, assim como o do irmão daquele velho não apareceu.” Lorena comentou. Ninguém tinha respostas. “Eu odeio criar uma esperança provavelmente falsa mas… Talvez eles não tenham aparecido porque estão em algum lugar. Vivos.” Lorena disse, olhando para baixo.

“Não,” João disse. Ele queria, do fundo de sua alma, acreditar que não havia perdido ninguém. Mas em uma coisa ele concordava com Lara: não vale a pena ter esperanças. Não agora. “Eles não tão vivos.” 

 O silêncio pairou sobre a sala, como se as palavras de João fossem uma confirmação. 

“Bom, e também tem a questão de…” Clara lentamente quebrou o silêncio. “De por que eles foram pegos. Talvez seja aleatório, mas…” após o sumiço de Lara, Clara parecia menos céptica. Como se coincidências fossem demais para serem coincidências.

Subitamente, Mila se levantou do sofá, seu rosto se iluminando como se houvesse uma lâmpada acesa em cima dela.

“Talvez eu tenha uma teoria.” Ela pegou sua mochila e se dirigiu até a porta. “E eu preciso ver se ela é possível.”

“Qual a teoria?” Lorena perguntou.

“Se não for possível, vai ser meio boba. Então eu só vou dizer quando tiver mais informações.” Ela abriu a porta.

“Mila, calma,” Clara foi até a menina, um pouco assustada. “E onde você vai arranjar mais informações?”

“Nao se preocupe,” No hall, o elevador chegou, e entrando nele, ela disse: “Eu volto em tempo pro amigo secreto.”

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 As decorações de natal continuavam lá, iluminando as ruas de verde e vermelho. Mila correu pelas calçadas da cidade, ansiosa para descobrir ou não uma resposta. Ela repensava as perguntas que poderia fazer em sua cabeça, repensava suas teorias, sua cabeça transbordando de ideias e adrenalina e medo. 

 Mila chegou no Sebo de livros e parou na frente do estabelecimento, retomando o fôlego. O velho, dono do lugar, organizava uma pilha de livros logo na entrada do lugar, e parou para observar a menina ofegante na sua frente.

“Boa tarde,” ela disse, quando se recuperou da corrida. Ela se aproximou do velho. “Eu estive aqui, alguns dias atrás…”

“Eu lembro.” o velho disse.

“Lembra? Bom… O senhor contou, a mim e uns amigos, uma história sobre… Sobre o seu irmão.”

“Sim, sim. O que tem?”

“Eu queria perguntar… Pode parecer uma pergunta estranha, eu só…”

“Você acredita, não acredita?” o velho perguntou.

“Sim,” Mila falou a verdade. “Mas você sabe se… Se o seu irmão acreditava?”

“No monstro?”

“É.”

“Não. Não, ele foi até lá comigo porque eu não parava de falar sobre. Ele disse que eu estava o irritando.”

Mila assentiu com a cabeça. “E você…”

“Eu achava que era um monstro. Meu irmão queria apenas que eu parasse de falar sobre. Ele me levou até lá pra que eu visse que não era nada. Bom… Não funcionou muito.” o velho olhou para o céu como se falasse diretamente com seu irmão.

“Entendo.” Mila disse, lentamente saindo da loja. “Obrigada.”

“Por que quer saber, menina?”

“Curiosidade.” e então ela saiu novamente, correndo pelas ruas natalinas sob o sol forte.

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 Pedro Falcão sentava em uma das cadeiras ao redor da mesa da sala de jantar de Clara, seus amigos sentados em outras das cadeiras. Pela primeira vez, a reunião de todos nao dava em conversas incessantes e barulho e risadas - a sala era quase completamente quieta. Ninguém sabia bem como lidar com a ausência permanente de dois deles.

 O amigo secreto havia sido combinado no primeiro dia de aventuras de verão - mas mal eles sabiam que algumas pessoas faltariam no dia. Eles decidiram não cancelar - decidiram tentar, ao menos, não dar-se ao luto, e de todo modo, a maioria das pessoas já havia comprado seus presentes.

“Eu tirei Victor,” Guilherme quebrou o silêncio de forma muito sutil, sua voz baixa, e jogando seu presente em cima da mesa com uma pequena força, como se estivesse desistindo. A dor em seu rosto era visível - um pequeno embrulho em sua mão e um jogo bobo de natal o lembrando que um de seus melhores amigos estava desaparecido, provavelmente morto.

 Ao redor da sala, as pessoas não sabiam bem o que comentar. Suas cabeças baixas demonstravam pena e tristeza. Não era o melhor natal do mundo.

“Eu tirei Lara.” Sabrina disse baixo, levantando-se do sofá e colocando uma pequena caixinha na mesa, ao lado do presente de Guilherme. “E eu espero que alguém vivo tenha me tirado.” Ela brincou, mas sua voz continuava baixa e suas feições continuavam triste. Contar piadas através da dor não era sempre tão fácil.

 Quebrando mais uma vez o constante silêncio, a porta da frente abriu e Mila entrou - com as mesmas roupas de antes, a mochila em suas costas, os cabelos bagunçados pelo vento.

“Desculpa a demora,” ela disse.

“Descobriu o que queria?” João perguntou.

“Sim,” ela deixou a mochila no chão e ficou de pé na frente de todo o grupo. “Sim.”

 Seus amigos franziram as sobrancelhas. Ela parecia um pouco lunática, parada olhando para todas aquelas faces.

“Eu preciso falar com vocês.”

“Qual era a teoria?” Lorena perguntou.

“A teoria,” Mila olhou para Lorena. “É que… O monstro-” ao falar isso, alguns de seus amigos fizeram expressões como se não acreditassem que Mila poderia estar realmente levando aquilo a sério. Pedro Falcão revirou os olhos, Gois manteu suas sobrancelhas franzidas. “O monstro pega as pessoas que não acreditam nele. Lara era cética, Victor estava brincando comigo, com o que eu estava dizendo. E o irmão do velho, do dono do Sebo, ele me disse que ele não acreditava também.”

“Então você tá dizendo que a culpa foi deles? Por não acreditarem?” Lorena disse, um pouco revoltada que Mila pudesse estar culpando seu namorado por sua morte.

“Eu não tô…” Mila mediu suas palavras e ficou confusa. Não esperava essa reação. “Eu nao to culpando ninguém. Eu só achei um padrão… Algo em comum entre as vítimas.”

Lorena não pareceu gostar. Todos pareciam confusos.

“Então você realmente acha que tem um monstro?” Falcão disse, indignado.

“Eu tenho quase certeza que tem um monstro, Falcão. Você pode ajudar ou você pode ficar calado. Ou você pode deixar que o seu ceticismo de leve ao mesmo caminho que Lara e Victor.” Mila se defendeu, confiante, mas sua resposta levou susto ao rosto de seus amigos, surpresos com o modo trivial que falava da morte de duas pessoas tão próximas. Como se fosse um jogo.

 Ela sabia disso. Sabia que seus amigos estavam lidando com os desaparecimentos de forma mais pesada que ela, que ela no fundo achava que se descobrisse todo o mistério, tudo voltaria ao normal.

“...Desculpa.” Ela disse, cabeça baixa, ao grupo que a observava. Mila se sentou no lugar vago no sofá.

“Alguém quer pipoca?” Clara se levantou da cadeira que sentava, tentando quebrar o gelo. “Uma pipoca cairia bem.”

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 O clima na cozinha parecia mais leve, o cheiro de milho e manteiga perfumando o lugar por causa da porta fechada. Lá dentro, Eduardo havia acompanhado Clara e estava sentado na cadeira da pequena mesa da cozinha enquanto a menina mexia no fogão. Os dois conversavam sobre um jogo, uma conversa fiada para matar o silêncio constrangedor que pairava entre todos eles nos últimos dias.

“Eu não atualizei ainda,” Clara disse, enquanto mexia a panela de pipoca.

Eduardo abriu a boca para responder, mas foi distraído pela porta da cozinha abrindo. Pedro Gois entrava sutilmente, cumprimentando os dois e sentando em uma cadeira.

“Como vai a pipoca?”
“Quase pronta,” Clara disse. “Britinho, você pode olhar aqui um segundo?” Ela apontou com a cabeça para a panela. “Vou checar como está o clima pesado lá fora.”

 Eduardo assentiu com a cabeça e se levantou até o fogão, segurando o cabo da panela com a mão e ficando de costas para o resto do lugar. Clara saiu da cozinha e ele podia sentir os olhos de Pedro Gois nele.

“Você tá bem?” Gois perguntou.

Eduardo se virou para ele e assentiu com a cabeça. Ele virou o rosto novamente ficando de costas para o outro menino, sabendo que nunca conseguia mentir para Pedro.

“Mesmo com o clima pesado?” Gois insistiu.

Eduardo suspirou. Ele raramente falava o que realmente sentia, mas com Pedro tudo parecia diferente. “Não tem como ficar bem no meio de tudo isso.”

Gois se levantou e se juntou ao outro menino na frente do fogão.

“Eu sei,” ele apoiou as costas na bancada da pia e olhou para Eduardo. “Eu me preocupo com você.”

Eduardo não sabia o que responder. “E você tá bem?”

“Eu to com medo,” Gois respondeu. “E triste. E preocupado. E eu não sei o que fazer no meio de tudo isso. Eu não sei se eu acredito em tudo que tão… teorizando… mas eu quero ajudar. Eu quero tentar impedir que isso aconteça de novo. Com… qualquer pessoa.”

 Eduardo tirou seus olhos da panela e olhou para Pedro.

“Eu não quero que nada aconteça com você,” ele disse, sua boca movendo mais rápido que sua mente. Ele repetiu as palavras em sua cabeça e se surpreendeu consigo mesmo por ter dito elas. Mas Pedro Gois as entendeu perfeitamente, e ele sabia que ele quis dizer o mesmo. No meio de todo o caos, toda a perda e todo o luto assombrando o grupo como um fantasma, os dois meninos pareciam se preocupar mais um com o outro do que com qualquer outra pessoa. 

 Quando tudo começou a acontecer, os pesadelos de Eduardo eram sempre iguais - aquela mesma piscina, e Victor desaparecendo, se transformando na piscina de sua própria casa, o corpo de Pedro Gois flutuando sem vida. Quantas vezes ele havia acordado e ligado imediatamente para o outro menino, pois nunca conseguiria voltar a dormir sem saber se ele estava bem, e nunca conseguiria voltar a dormir sem ouvir a sua voz.

 Ambos haviam achado conforto um no outro no meio do caos. E então, seus olhares se encontrando, a distância entre Eduardo e Gois foi diminuindo, pela primeira vez, a dúvida na cabeça de Eduardo se transformando lentamente em certeza, a medida que o espaço entre os dois se tornou mínimo e suas bocas se encontraram.

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 João acordou inspirado. O amigo secreto da noite passada havia sido desastroso - o clima estranho, o silêncio constante, as teorias e descobertas chamando uns para ajudar a desvendar tudo ou fazendo outros se afastarem mais. Mas a fala de Mila pareceu ter feito João querer acabar com tudo aquilo o mais rápido possível, descobrir o que era esse terror que se instalava em suas vidas. Ainda cedo na manhã, João saiu para a biblioteca. Talvez algo tenha passado batido por eles, talvez algo tenha sido ignorado. Ele iria procurar por todos os cantos, todas as quinas, por qualquer coisa que pudesse o levar a uma resposta.


 O acervo de jornais da biblioteca era infinito. João passou por todos eles, todas as cópias, obcecado e vidrado. 

 Tudo que havia encontrado era a mesma notícia que já haviam visto antes. Pedro Freitas, 1951. Ele precisava de mais. Havia pelo menos 5 cópias para cada edição de jornal. Foi assim por todos os anos diferentes que João leu. 8 cópias do Jornal de 18 de janeiro de 1966, 6 cópias do Jornal de 27 de junho de 1978, e nenhum delas minimamente relevante para sua busca. Foi então que seus olhos quase passaram direto, mas ele não deixou passar: uma única cópia de um dia qualquer de dezembro de 85. João já tinha lido tantos jornais inúteis naquela tarde que o fato de só existir uma cópia daquele o fez ter um pouco de esperança que finalmente havia achado algo.

 Nas primeiras páginas, o jornal era comum como todos os outros. Nenhuma história chamava sua atenção. João estava pronto para guardar os papéis, para deixar sua leve esperança de lado. Então ele virou a página.

 A foto impressa na sua frente era quase comum. O mar em preto e branco carregava o corpo de uma mulher - Milena Basílio, 21 anos - as mesmas marcas em seu calcanhar. Entretanto, diferente das fotos de Elias Gomes na notícia de algumas semanas atrás, e diferente da de Pedro Freitas no jornal de todos aqueles anos passados, a imagem na frente de João mostrava uma mulher de olhos abertos, claramente viva.

 Então quando João procurou nos obituários por Milena Basílio e não encontrou nada, ele sabia o que precisava fazer.

Falcão, ele mandou a mensagem. Eu preciso que você use as suas habilidades de hacker para descobrir onde uma pessoa mora.

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 Pedro Falcão era cético por natureza. Ele acreditava na ciência e exclusivamente na ciência. Nunca entraria na cabeça dele o porquê de seus amigos estarem tão investidos num conto de terror ficticio, num monstro inexistente e em histórias lunáticas. Ele não sabia a causa das mortes das pessoas no oceano, ou do desaparecimento de seus amigos - mas isso não significava que a resposta seria mística e fantástica como Mila especulava, como seus amigos pareciam acreditar.

 Pedro Falcão não acreditava em monstros, mas se isso ajudaria seus amigos, - a descobrir alguma coisa, a lidar com o luto, o que seja - se isso o faria útil, ele deixaria de lado a vontade de mandar todos acordarem, de indignar-se com a loucura de todos ao seu redor. 

 Então ele mandou o endereço a João.

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 A sorte de João foi que Milena morava perto do mar. Milena também tinha um bote inflável, jogado murcho no hall do elevador, para sua sorte. Então quando ele saiu do apartamento da mulher depois de uma longa conversa, a verdade borbulhando em sua cabeça, tudo finalmente fazendo sentido, ele não teve tempo para ligar para ninguém, avisar a ninguém. Isso podia esperar. Ele veria tudo com os próprios olhos e contaria a Mila, a Clara, a todos eles. Aos que acreditaram ou não, ele mostraria a todos eles a verdade. E se, no fundo, ele tivesse a esperança de encontrar Lara, ele resolveu ignorar o pensamento. O bote estava bem na sua frente, assim como o mar, e ele não deixaria aquilo passar. Ele pegou o pequeno barco inflável, convencendo a si mesmo que não era roubo - ele devolveria assim que pudesse - e desceu o elevador, andando os poucos metros até a beira da praia.

 

 Ele parou na areia e encheu o bote com a boca. O objeto crescia aos poucos enquanto um pequeno chuvisco caia sobre eles. Depois de alguns minutos, o bote crescendo tanto quanto a chuva, João empurrou o barco mar adentro e subiu nele.

 As ondas fortes se juntavam à chuva balançando o bote e João, a correnteza lembrando o menino de que ele não fazia a mínima ideia do que estava fazendo. João tentava controlar o bote, mas o mar ao seu redor era caótico. Ele remou na direção contrária às pedras, onde a correnteza o levava, mas a natureza tinha seus próprios planos.

 João nunca imaginaria que no meio da história de terror que ocorria em suas vidas ele seria levado assim, com uma onda o triplo do seu tamanho e da sua força, o empurrando em direção às pedras antes mesmo que ele pudesse ter um vislumbre da criatura, mas quando sentiu o impacto de sua cabeça com uma rocha pontiaguda, quando mergulhou no mar, o bote a metros de distância e a água ao seu redor tornando-se vermelha, quando tudo ficou escuro a não ser pelo rosto de Lara o chamando - ele percebeu que não havia mais nada a fazer além de aceitar seu destino.



 A mulher falando na TV havia deixado todos confusos. 


 Eduardo tinha acordado naquela manhã com o mesmo sentimento de todas as manhãs - o pensamento de que, se ficasse deitado, de olhos fechados, debaixo das cobertas, se nunca olhasse suas mensagens ou ligasse a tv, se não fizesse nada, nada aconteceria, nada nunca haveria acontecido. O sentimento de que tudo o que mais queria era ignorar tudo e fingir que nenhum de seus amigos havia morrido, sumido. Esse sentimento se intensificou a cada movimento que o menino fazia, e quando abriu seu celular e leu o que falavam no grupo de mensagens, ele desejou que nunca, nunca tivesse se levantado.

 A morte de João era noticiada na televisão e todos haviam se juntados na casa de Clara naquela manhã. Além de devastados com a morte de mais um amigo, o grupo também estava confuso, extremamente confuso, com tudo que a rodeava. Espalhados pelo chão e no sofá, Clara, Eduardo, Mila, Guilherme, Pedro Vitor, Lorena e Pedro Gois assistiam a mulher no noticiário sendo entrevistada na frente de onde o corpo de João havia sido encontrado, levado até a areia pelas ondas, a água vermelha ao seu redor, sangue seco na sua nuca.

“Não, eu não o conhecia,” a mulher, cujo nome estava estampado no canto da tela - Milena Basílio, dizia. “Eu não sei como ele conseguiu o meu bote. É uma pena o que aconteceu.”

“Não faz sentido,” Guilherme comentou. “Brito, pesquisa sobre essa mulher.”

“Eu já pesquisei,” Eduardo estava sentado no sofá entre Clara e Pedro Góis, olhando seu celular. “Não tem nada.”

“Alguma coisa liga essa mulher com o que quer que João tenha feito,” Clara disse. “A gente devia ir atrás dela.”

Assim que disse isso, seu celular começou a tocar. Ela franziu a testa a ver o nome na tela - não era comum Pedro Falcão estar acordado antes do meio dia. Ela atendeu.

“O que tem?” ela respondeu ao menino no outro lado da ligação. “Calma… o que?”

“O que foi?” Guilherme perguntou. Clara levantou a mão, como se pedisse para que Guilherme esperasse.

“Manda pra mim.” e então ela desligou. “João falou com Falcão antes de tudo.” ela disse ao grupo que a encarava, esperando qualquer tipo de informação que pudessem achar. “Ele pediu pra ele conseguir um endereço.”

“Endereço de quem?” Mila perguntou. Clara respirou fundo.

“Milena Basílio.”

“Ele te mandou o endereço?”

“Sim, mas…”

“A gente tem que ir lá.” Mila se levantou.

“Sério? A gente não sabe quem ela é.” Pedro Vitor indagou.

“João descobriu alguma coisa com ela, que fez com que ele fosse correndo pro mar. A gente precisa descobrir o que foi. Pra que não seja tudo em vão, pra que a gente possa pôr um fim em tudo isso. Milena sabe de alguma coisa que a gente não sabe, e a gente precisa falar com ela.”



 O rosto de Milena tomou uma expressão assustada quando ela abriu a porta e viu 7 adolescentes no seu hall de elevador.

“Posso ajudar?” ela disse.

“É sobre João. Ele é… Ele era nosso amigo.” Mila disse. Milena deixou-os entrar.

“Eu já disse que não sei de nada,” ela disse, apesar de ter convidado os 7 para sentarem. “Eu não posso os ajudar.”

“João veio até você por um motivo,” Clara disse. “E eu acho que você sabe qual é.”

A mulher respirou fundo, e então sentou-se na poltrona mais perto.

“Ele… ele havia encontrado uma notícia antiga. Sobre mim. Ele veio pedir mais informações sobre.”

“Qual era a notícia?” Lorena perguntou, e todos se imprenssavam no pequeno sofá olhando para a mulher, que fechava seus olhos, se preparando para contar algo que não parecia muito disposta a falar.

“Sobre um… ataque. Que aconteceu comigo.” ela suspirou e se levantou, andando até uma mesa de vidro do outro lado da sala. Em cima dela, havia um jornal. Ela pegou o jornal e mostrou ao grupo.

“Ele trouxe isso. E pediu que eu lhe contasse tudo que eu sabia.”

O grupo observou a manchete na sua frente. A foto de Milena, muitos anos atrás, as marcas nos seus tornozelos, a praia. João havia achado uma pista essencial, e havia a seguido.

“Ele devia ter falado com a gente…” Clara falou baixo, e então tirou os olhos do jornal e encarou Milena. “E o que você contou pra ele? O que você sabe? O que fez com que ele morresse?”

“Eu não sabia que ele iria direto para o mar. Que iria… tentar ver com os próprios olhos. Foi imprudente da parte dele. Eu sinto muito.”

“O que você falou pra ele?” Guilherme repetiu a pergunta de Clara, curiosidade e raiva e medo em sua voz.

A mulher respirou.

“Eu… eu contei o que eu vi. Eu estava na piscina da minha casa na manhã daquele dia. Sozinha, tranquila. Eu fui puxada para baixo subitamente, algo… alguém segurando meus pés, me arrastando para o fundo.”

“Já ouvimos esse tipo de história. Como você sobreviveu?” Mila interrompeu.

“Eu fui indo cada vez mais pra baixo, cada vez mais escuro, e eu me vi no mar. Não me peça uma explicação, eu só sabia que estava no mar. Minha piscina estava a quilômetros de distância. E então eu a vi.” Ela respirou fundo. “A criatura… Estava com fome.”

“Então tem uma criatura.” Mila disse, como se dissesse “eu avisei” para os amigos ao lado dela.

“Eu não sei o que é. Não sei se um dia vou descobrir. Naquela época, quando me perguntaram, eu disse que era uma sereia. Não tinha uma cauda ou cabelos enormes como as sereias que imaginamos, eu não sei porque descrevi assim. Foi só mais um motivo para me chamarem de louca. Mas foi a palavra que eu achei. A criatura estava na minha frente, e eu olhei nos seus olhos. Ela estava só com fome.” Milena parecia triste, contando a história. “Eu não podia culpá-la. Tudo ao nosso redor, naquele momento, no fundo do mar, era o escuro. E eu podia… Eu podia sentir o quão sozinha ela estava. Eu podia sentir… O quão vazia ela se sentia.

“Eu não queria morrer. Eu deveria estar desesperada, naquele momento, mas por algum motivo ela não me matou. Não imediatamente. Ela me puxou para baixo e olhou para mim. E então, quando eu tinha aceitado o meu destino, quando eu tinha entendido o que estava acontecendo, quando eu tinha entendido a criatura na minha frente… Ela me deixou ir. A água levou o meu corpo para cima e eu emergi no mar.”

“Por que ela te deixou ir?” Guilherme perguntou.

“Eu não tenho certeza. Eu acho que… Eu tive tantos anos para pensar sobre isso, o acontecimento se repetindo na minha cabeça e nos meus sonhos por décadas… E a única conclusão que eu consegui chegar foi que… Que nós nos entendemos. Eu não sei a história daquela criatura, eu não sei sua origem ou sua anatomia ou seus objetivos, eu só sei que ela estava vazia e sozinha e se alimentando de humanos. E naquele momento eu senti… Eu senti empatia, e ela sentiu pena. Ela me deu misericórdia, por não tê-la visto como um monstro, e não conseguiu me matar a sangue frio. Não depois que nós nos entendemos.”

O grupo olhava para a mulher de cabeça baixa com muitas perguntas na cabeça. Clara havia desconstruído seu ceticismo em relação a muitas coisas depois de ouvir todas aquelas histórias e ver seus amigos sumirem, mas a justificativa da mulher não a convencia. Mila, por outro lado, tinha ideias muito diferentes sobre o que acabara de ouvir.

“Então… As pessoas que apareceram no mar, com marcas nos tornozelos…”

“São as que não temeram a criatura. As que tiveram empatia. As que a criatura deixou partir. É isso que eu acho. Ela tem que se alimentar - e pelo que os padrões indicam, num intervalo de uns 30 anos… Nada do tipo havia acontecido, desde o meu ataque. Mas algumas pessoas ela simplesmente não tem coragem de matar.”

“Então Victor e Lara-” Lorena disse.

“A gente não tem certeza de nada.” Clara olhou para Lorena. “A gente não sabe se é realmente isso.” Ela não acreditava que Victor e Lara pudessem realmente ter alguma chance de estarem vivos, mas ela não iria deixar que a esperança deles fosse abalada até que fosse tarde demais.

“E foi isso que você disse a João, ontem?” Mila perguntou a Milena.

Milena acenou com a cabeça. “Ele me mostrou o jornal e eu contei toda a história.”

“O jornal,” Lorena tirou seus olhos da mulher e olhou para o jornal na mesa de centro. “João te achou por causa do jornal, mas a gente procurou por…”
“Ele não devia estar em circulação,” Milena respondeu, sabendo para onde a fala de Lorena iria. “Aquela edição de jornal deveria ter sido completamente destruída. Quando me entrevistaram sobre o que tinha acontecido, eu fui motivo de risadas. A cidade inteira me chamava de louca, eu fui mantida presa em casa por anos pela minha família. Eles tinham vergonha, e assim que a notícia saiu, eles usaram o poder que tinham sobre a cidade para eliminar todo e qualquer jornal contando minha história. O fato de essa única edição ter sobrevivido é… Interessante.”

“‘Interessante’ matou nosso amigo.” Guilherme disse, amargamente.

“A culpa não é minha se ele foi… Deus sabe o que ele foi fazer. Eu sou o contei a história que ele pediu para ouvir.”

“A gente sabe que a culpa não é sua.” Mila repreendeu Guilherme. “Obrigada pelo seu tempo, Milena.”

Milena assentiu com a cabeça. “Vocês aceitam a água?” ela perguntou, e quando a maioria aceitou, ela se levantou e foi até a cozinha.

Sozinhos na sala de sofá, o grupo se olhou.

“E o que a gente faz agora?” Guilherme perguntou, incerto de o que aconteceria agora que sabiam, talvez, algumas das respostas que tanto haviam procurado.

“A gente vai até lá.” Mila disse.

“Até lá?” Clara indagou. “Até o mar? Fazer a mesma coisa que João fez?”

“João tava sozinho, e o mar não ajudou. A gente tem que ir, juntos, ou então pra que foi tudo isso? Como a gente vai impedir que isso continue acontecendo se a gente não for até a criatura?”
“Como a gente vai descobrir o que realmente aconteceu com Victor e Lara se a gente não for até lá…” Lorena adicionou baixo.

Clara suspirou. “Eu acho que é uma ideia estúpida. Eu acho que o que essa mulher disse é-” ela abaixou seu tom de voz, com medo que Milena a ouvisse do outro ambiente. “-loucura. A gente vai se colocar em perigo por causa de uma história que a gente não sabe nem se é real.”

“É isso ou não fazer nada, Clara! Eu não aguento mais ficar parada enquanto os meus amigos morrem ao meu redor!” Mila disse, seu tom de voz elevado, chamando a atenção de Milena, que saia da cozinha com uma bandeja de copos d'água nas mãos. Silêncio incômodo se instalou na sala.

“Senhora,” Pedro Góis, que não havia dito nada até agora, quebrou-o, se dirigindo a Milena. Alguém precisava fazer uma decisão no meio daquele caos, e se ele tivesse que ser esse alguém, ele seria. “O bote que João pegou… Você pode nos emprestar?”

 Apesar do medo tomar conta de Mila, ela respirou aliviada. Eles fariam isso. Eles colocariam um fim naquele terror.

 “Eu tenho um maior, na verdade.” Milena disse, colocando a bandeja na mesa e andando em direção a porta de entrada de seu apartamento. “Na garagem.”



 Os sete se apertaram no bote e o empurraram mar adentro. Clara segurava um remo de um lado e Pedro Vitor do outro, fazendo o barco se mesclar com as ondas que ficavam mais calmas o mais fundo que iam. Ninguém sabia bem o que estavam fazendo. Procurando provas, respostas, procurando uma conclusão. Eles olhavam para o mar abaixo de si e se estendendo por milhas e milhas na sua frente e se perguntavam se estavam fazendo a coisa certa.

 Mas não havia coisa certa. Havia ir atrás de uma resposta e havia ficar parado. E eles já tinham ido longe demais para voltar atrás.

 Eles haviam remado fundo o bastante. Era perto de meio dia e a praia deveria estar lotada, mas depois da notícia da morte de João e da de Elias na semana passada, as pessoas estavam evitando aquela praia. As únicas pessoas no mar eram dois pescadores em seus barcos, e o grupo já havia os ultrapassado. Era fundo o bastante.

“E agora?” Clara perguntou, parando de remar. O mar era tranquilo e nada acontecia. Só se ouvia o som das ondas. Mas ela tinha falado cedo demais. As ondas pequenas que vinham começaram a ficar mais fortes e o céu começou a chuviscar.

“Eu não acho que isso seja um bom sinal.” Guilherme comentou.

“Talvez a gente deva voltar.” Eduardo, que não havia dito muito na jornada inteira, abriu a boca. Ele não sabia bem o que estava fazendo lá. Ele não sabia bem no que acreditava, mas se era aquilo que Pedro Góis queria - descobrir o mistério, descobrir se seus amigos estavam bem, impedir que a história se repetisse - Eduardo o seguiria nessa jornada.

“A gente já chegou longe demais. Ir embora talvez seja pior.” Lorena falou. Nesse momento, Pedro Vitor segurou o remo com uma mão e a outra buscou algo no bolso de seu calção. Ele tirou um canivete suíço dali e jogou para Clara, que pegou com sua mão livre. Ela acenou com a cabeça para Pedro, entendendo e agradecendo.

“O que é isso?” Mila perguntou, observando o movimento entre os dois, que se entreolharam.

“É tudo o que temos,” Clara olhou para Mila, temendo a reação da outra menina. “pra matar o monstro.”

Mila não conseguiu acreditar no que tinha ouvido. “Matar? O monstro?”

 Clara deu um pequeno sorriso irônico como se já soubesse que isso aconteceria. Que seus objetivos naquela viagem de bote eram diferentes das de Mila.

“Vocês prestaram atenção em alguma coisa que descobrimos sobre essa situação?” Mila disse, seu tom de voz um pouco elevado, intensificados pela necessidade de gritar - o som das ondas fortes quebrando era alto e o grupo quase não se ouvia. Ela olhou para todos ao seu redor, checando se todos tinham a mesma intenção de Clara. Pedro Gois manteve sua cabeça baixa, Eduardo manteve seus olhos no menino. Lorena olhava para Mila, sem saber o que dizer, e apenas Guilherme assentiu, concordando com ela. Pedro Vitor olhou para Clara, que revirou seus olhos com a fala da menina.

“Que é pra ter empatia? Que é pra entender? Entender o que, que esse monstro matou meus amigos, e vai continuar matando até que alguém bote um fim nele? Isso eu entendo.” Clara falou alto para Mila, o bote balançando cada vez mais, o mar revoltando-se e a chuva intensificando.

 Mila abriu a boca para responder, mas foi interrompida pelo movimento do mar forte embaixo do bote, balançando-os bruscamente e desequilibrando todos.

“Não caiam no mar,” Mila disse, assustada, aos seus amigos. Se aquelas eram as opiniões que tinham, não haveria piedade por parte da criatura. “Não caiam no mar.”

“Ah, agora que você disse-” Eduardo começou seu comentário irônico, mas o mar mais uma vez os interrompeu e os desequilibrou, balançando o menino e levando a quase cair de costas na água. Ele se segurou em Pedro Góis e olhou ao seu redor, o mar violento os rodeando.

“Você acha que é… ela que ta causando isso?” ele disse.

“Talvez ela saiba que a gente tá aqui por ela,” Mila disse, se segurando com força na borda do bote para não cair. “E esteja tentando se proteger.”

 A chuva e o estado das ondas formavam uma tempestade marítima no grupo, e era preciso muita força para se segurar alí. As ondas fortes batiam no bote e os atingiam, e, com um revolto movimento, Lorena caiu no mar. A correnteza era forte sobre ela e ela tentava nadar de volta para o bote, ofegante, sem sucesso.

“Lorena!” Clara gritou, tentando levar o bote para mais perto dela. 

“Tem algo me puxando,” Lorena dizia, desesperada. “Tem algo me puxando!”

Clara, no meio dos movimentos violentos do bote o do mar, tentou ir ao outro lado do bote, para mais perto de Lorena, e estendeu o remo para que a menina se segurasse.

“Segura!”

O grupo observava a tentativa de Clara, sem saber mais o que fazer. Lorena esticava seus braços, tentando alcançar o remo.

“Eu vou pular,” Pedro Gois sugeriu. “Pra pegar ela.”

“Vai ser pior.” Guilherme disse, indo mais próximo a Clara para tentar ajudá-la a puxar Lorena. Nadando contra a correnteza, com as ondas batendo em seu rosto, e talvez algo a puxando para baixo, Lorena conseguiu agarrar a ponta do remo e Clara e Guilherme a puxaram de volta para o bote.

 O impulso do movimento, entretanto, empurrou o remo para trás, nocauteando o rosto de Mila.

“Ai!” Ela disse, colocando a mão no seu olho direito, que havia sido atingido. Com Lorena de volta no bote, ofegante e assustada, Clara e Guilherme olharam para Mila.
“Ah meu Deus,” Clara disse, agachando-se na frente dela. “Deixa eu ver.” 

Mila tirou a mão do rosto e mostrou o olho inchado para a menina, que o tocou.

“Ai!” Mila gritou de dor e Clara tira a mão de seu rosto.

“Desculpa, meu Deus.”

Mila volta a cobrir o rosto com a mão enquanto a tempestade balança o bote e todos nele.

“O que a gente pretende fazer?” Lorena diz, levemente irritada.

“Eu não sei, Lorena! Eu não sei!” Clara grita por cima das ondas, desesperada. Eles haviam chegado até ali e agora não sabiam o que fazer. O mar os derrubava e os colocava em perigo, e eles não haviam feito nada. Nao haviam matado ou salvado a criatura, não haviam descoberto o paradeiro de seus amigos. Só haviam corrido perigo. 

“É melhor a gente voltar,” Guilherme disse. “É perigoso demais.”

 É a melhor decisão, Mila pensa. Manter seus amigo a salvo. Mas nunca irá existir segurança de verdade se eles deixarem tudo aquilo para trás.

“Vão,” ela diz, ficando em pé no bote com cuidado. 

Seus amigos olharam para ela confusos.

“O que você-” Guilherme começa a dizer, mas Mila o interrompe.

“Vão.” ela repete, e então pula na água, mergulhando por inteiro nas ondas agressivas e na tempestade marítima.



 Debaixo d'água, o movimento da superfície parecia insignificante. Não demorou muito depois que Mila pulou para que ela sentisse algo a puxando para baixo - uma força segurando seus pés e a levando para o fundo, firme, deixando marcas nos tornozelos da menina. Ela foi sendo levada cada vez mais para baixo, a água ao seu redor se transformando no escuro - Mila se viu no oceano, e então, quando olhou para cima, era como se estivesse na piscina de Pedro Vitor de novo, e logo em seguida sentiu como se tudo tivesse se encolhido, presa no fundo de uma banheira - toda a água do mundo ao seu redor, mas o oceano se estendia abaixo dela, e ela o seguia para baixo.

 

 E então a força a puxando parou. Era escuro lá embaixo, mas algo ela conseguia ver claramente - corpos na areia, sem vida e se decompondo. Lara e Victor estavam lá, seus cadáveres no fundo do mar, devorados pela criatura. 

 E a criatura na sua frente.



EPÍLOGO



 Quando eu emergi, ninguém havia feito o que eu havia dito - saído dali. Não corriam perigo, entretanto - parece que assim que eu pulei a tempestade havia parado lá em cima.

 Eu emergi como se tivesse apenas mergulhado por mais tempo do que conseguia segurar a respiração. Ofegante, todos se assustaram com a minha aparição - parecia que já tinham aceitado a minha morte.

 Lorena olhou para mim, como se eu tivesse acabado de descobrir tudo e havia voltado para contar a história. Talvez tenha sido exatamente isso. Eu sabia o que ela queria saber, e balancei minha cabeça para ela, dizendo ‘não’. Não havia mais esperança para aqueles que haviam sumido. Seus corpos estavam no fundo do oceano.

 Pedro Vitor me puxou de volta para o bote e então remamos de volta para a areia. A jornada de volta foi silenciosa - apesar de tudo, não haviam perguntas a serem feitas. Eu havia sido solta, liberta das amarras da criatura. Não parecia ser o final, não naquele momento. Não sabíamos o que aconteceria agora. Talvez eles pensassem que eu havia a matado. Talvez eu tivesse.


 Na praia, sentamos numa mesa de plástico e Guilherme percebeu que meu olho ainda estava roxo e inchado. Ele pegou gaze de sua mochila - Deus sabe por que ele tinha - e começou a cobrir meu olho direito ao redor da minha cabeça.


 Eu não estava afim de participar de qualquer discussão que fosse que vocês discutiam. Não queria que me perguntassem sobre o que tinha acontecido comigo, sobre o que aconteceria agora. Então fui para a beira da praia e observei o mar tranquilo na minha frente. Clara me chamou para voltar, mas eu disse que ficaria ali. Que não estava pronta ainda. Vocês saíram da mesa, foram andando para o outro lado da praia.

 Assim que estavam fora do meu campo de visão, eu andei em direção à água, e quando ela chegou no meu peito, eu continuei nadando, o mais fundo que pude. E então eu mergulhei, e a agua ao meu redor foi lentamente se transformando em escuridão. 

 

Eu sentirei falta de vocês, mas não havia outra opção. No final, todos nós achamos paz.



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